A Lei Federal 13.786, de 27 de dezembro de 2018, já em vigor, renova o marco regulatório do mercado imobiliário, de enorme importância para as incorporações e os loteamentos.
O texto da nova lei limita e tarifa a cláusula penal na hipótese de resolução do contrato, por inadimplemento da obrigação de pagamento do preço.
O propósito da nova regulamentação foi pacificar as relações de consumo, trazendo regras claras para reforçar a obrigatoriedade do vínculo contratual, como forma de proteção do empreendimento, da sociedade como um todo e, principalmente, do bom consumidor.
A restituição é inerente à resolução do contrato e meio de evitar o enriquecimento ilícito[1][2]. A nova lei fixa faixas de valoração pelas partes de dimensão máxima de cláusula penal, determinando o necessário equilíbrio para se evitar o enriquecimento ilícito.
A livre convenção dentro das bandas previstas na nova lei retira da cláusula penal qualquer vestígio de abusividade ou presunção de exagero, vedadas pelo artigo 51, parágrafo 1º, do CDC.
Agora, nas incorporações com submissão ao regime do patrimônio de afetação, a cláusula penal pode ser livremente convencionada, mas observado o limite de até 50% da quantia do preço até então paga pelo adquirente (artigo 67-A, parágrafo 5º da Lei Federal 4.591/64).
E, naquelas sem patrimônio de afetação, esse limite é reduzido a 25% dessa mesma quantia até então paga (artigo 67-A, II, da Lei Federal 4.591/64).
Por outro lado, nos parcelamentos do solo urbano, esse limite para o livre ajuste é de 10% do preço da venda e compra, então compromissada, corrigido monetariamente (artigo 32-A da Lei Federal 6.766/79).
Trata-se de regra específica que afasta objetivamente a aplicação do artigo 413 do CC/2002, que impõe aos juízes o dever de reduzir, mesmo de ofício (isto é, independentemente do pedido da parte), a penalidade estabelecida em contrato, se entendida no caso concreto como desproporcional e excessiva ao consumidor.
Diante da tarifação expressa pelo legislador da multa máxima paga pelo comprador inadimplente, não há mais que se falar na aplicação do artigo 413 do CC/2002, restrita às situações de ausência de previsão legal do montante da cláusula penal.
Evidente que o regramento da redução proporcional da multa não se submete aos casos expressamente tarifados pelo legislador.
De fato, em face da tarifação expressa, não se admite intervenção judicial que afaste sua incidência.
Isso porque o arbitramento judicial da cláusula penal compensatória somente tem cabimento quando a lei não predeterminar seu valor ou um critério diretivo de sua fixação[3].
Argumenta-se a prefixação cogente das perdas e danos envolvidos no negócio, em função da segurança jurídica com o fomento de investimentos econômicos em benefício da sociedade como um todo, seja na perspectiva do consumidor ciente da responsabilidade assumida em cenário de aquisição em incorporação e em loteamento, evitando meras “apostas” distratáveis, seja sob a ótica do empreendedor ao qual cabe o planejamento em face do risco assumido, com eventuais débitos e créditos a serem ressarcidos já prefixados, garantindo a estabilidade do mercado imobiliário em cenários de crise.
No que toca à lei dos distratos, a dúvida que se coloca é se a aplicação de cláusulas gerais de boa-fé e da principiologia genérica consumerista seriam justificativas suficientes para suprimir os efeitos da tarifação cogente e expressa da retenção pelo empreendedor quando do inadimplemento absoluto do comprador.
Em meio ao pós-positivismo normativo, a ruptura e supressão de normas já não são tão evidentes ou indiscutíveis, uma vez que é perfeitamente possível a incidência de uma norma específica em um caso concreto sem exatamente suprimir por completo outra incompatível, em função de uma suposta “força moral” subjetiva e objetiva entre as normas. Nesse contexto, Erik Jayme[4] desenvolveu a tese do diálogo das fontes, segundo a qual as normas jurídicas não se excluem apenas porque supostamente pertençam a ramos jurídicos distintos, elas, na verdade, complementam-se integrando e constituindo um sistema misto, com normas que interagem entre si[5].
Quando do início da vigência do CDC, o STJ decidiu que “1. O contrato de incorporação, no que tem de específico, é regido pela lei que lhe é própria (Lei 4.519/64), mas sobre ele também incide o Código de Defesa do Consumidor, que introduziu no sistema civil princípios gerais que realçam a justiça contratual, a equivalência das prestações e o princípio da boa-fé objetiva”[6].
Ora, agora a nova lei altera as leis específicas, obrigando o intérprete a aplicar o CDC, à luz das novas regras.
Discussão semelhante foi levantada anos atrás quando do regramento da alienação fiduciária — lei especial posterior deve prevalecer sobre a norma consumerista?
Naquela ocasião, assim posicionou-se Cláudia Lima Marques:
“…a lei especial nova não revoga tacitamente a lei geral anterior, uma vez que o campo de aplicação da lei geral é naturalmente mais amplo e não coincidente com o da lei especial nova. Revogá-la significaria inaplicar a lei geral a outras matérias importantes. A lei especial nova, porém, pode afastar, em caso de antinomia verdadeira, a aplicação da lei geral anterior. Note-se que a antinomia é um conflito limitado e típico e que ambas as leis se aplicam ao caso concreto, prevalecendo a especial posterior no que regula e o regime geral (não incompatível) da lei geral ou especial anterior, se hierarquicamente iguais.
Em outras palavras, uma lei especial nova não tem o condão de afastar a incidência do CDC sobre estes determinados contratos de consumo. A lei especial nova regula a relação de consumo especial no que positiva e o CDC continua regulá-la de forma genérica e em todos os pontos não abrangidos pela lei especial nova.
(…)
Se os casos de incompatibilidade são poucos, há neles, porém, clara prevalência da lei especial nova pelos critérios da especialidade e cronologia. Somente o critério hierárquico pode ‘proteger’ o texto ‘geral’ anterior incompatível. Assim, o CDC como lei geral de proteção dos consumidores, poderia ser afastado para a aplicação de uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual…”[7].
Assim, na atualidade, trata-se do posicionamento que foi consagrado pelo STJ[8]. Como se vê, não há novidades. O mesmo ocorre nos casos envolvendo cortes no fornecimento de energia elétrica pelas concessionárias[9] e de extravios de bagagem — em que o STF reconheceu a possibilidade de limitação da indenização referente ao extravio de bagagem ou mercadorias em transporte aéreo internacional de passageiros, com base na Convenção de Varsóvia[10], afastando-se a aplicabilidade do regramento consumerista em face de lei especial.
Assim, perfeitamente possível que a norma especial apenas introduza exceção ao princípio geral, coexistindo ambos os regramentos para finalidades específicas. No mais, a lei é uma ordem dirigida à vontade geral, logo, uma vez em vigor ela se torna obrigatória para todos (artigo 3º da Lindb) — neste sentido não há que se falar em desprestígio dos consumidores em incorporação imobiliária ou em loteamento. Pelo contrário, trata-se de contexto específico objetivo em que as normas dialogam, aplicando-se a norma específica posterior para um determinado contexto concreto.
Como bem lembra Cretella Neto, com a globalização das relações econômicas, as empresas buscam mercados com base em fatores como mais incentivos fiscais, crescimento do poder aquisitivo da população, especialmente do público-alvo dos produtos ou dos serviços ofertados, infraestrutura, condições econômicas favoráveis e facilidade de trâmites burocráticos; legislação trabalhista não excessivamente protetiva ao trabalhador e menor interferência governamental no mercado.
Quanto à segurança jurídica, requer-se um conjunto de fatores que devem existir simultaneamente em um ordenamento jurídico, tais como a real independência do Poder Judiciário, a uniformidade das decisões judiciais sobre as mesmas questões jurídicas, o respeito absoluto à rule of law (Estado de Direito), a celeridade no trâmite processual, bem como a velocidade e eficácia com que contratos são cumpridos[11].
Soaria irrazoável a não aplicação da tarifação expressa de lei específica de distratos de compromissos de compra e venda, com fundamento em cláusulas gerais consumeristas e princípios constitucionais, notadamente do artigo 5º, XXXII — “O Estado promoverá, na forma da lei, defesa do consumidor” — ou do artigo 170, V — “A ordem econômica deve observar o princípio da defesa do consumidor” —, ambos da CF, até porque “a sujeição do devedor ao cumprimento voluntário ou forçado do contrato nunca desapareceu, nem desaparecerá, enquanto o Estado democrático de direito estiver assentado na propriedade e na livre-iniciativa”[12].
Bem fundamenta o professor Otavio Luiz Rodrigues Jr. ao tratar da constitucionalização das normas civilistas, explicando que o que ocorre na atualidade é uma evidente “trivialização de princípios e de direitos fundamentais”, de modo que, “em nome da constitucionalização do Direito Civil chega-se rapidamente a uma banalização dos direitos fundamentais”[13].
A vulgarização dos princípios constitucionais e, por conseguinte, dos direitos fundamentais é matéria que ganha paulatinamente a atenção da doutrina brasileira. A eficácia direta destes princípios termina por servir como justificativa metodológica, que na prática é vazia, para a invocação de elementos próprios do Direito Constitucional em detrimento da normativa privada. Em meio às consequências tem-se o abandono dos métodos hermenêuticos adequados e recurso imediato à ponderação, além da própria trivialização de direitos fundamentais[14].
A transferência do espaço decisório da autonomia privada para o âmbito judicial, ainda nas palavras do professor Otavio, talvez seja o mais grave dos problemas da eficácia imediata dos direitos fundamentais em relação aos particulares, na medida que incorre no “desrespeito aos esquemas mentais, às circunstâncias metajurídicas e à racionalidade própria (ou falta dela) dos agentes que negociam sob o prestígio da autonomia privada. O juiz não está aparelhado para decidir sobre um negócio jurídico com o mesmo nível de informações, expertise e de interesse (inclusive egoístico) que o detido pelas partes contratantes (…)”. “O próprio Direito Civil é adaptado historicamente para compreender o modo de funcionamento muita vez errático, irracional e entrópico da atividade negocial.”[15]
Evidente o estrago que a aplicação desenfreada pelos tribunais brasileiros do artigo 413 do CC/02, com a redução da cláusula penal acabou por gerar no mercado imobiliário, o que resultou na própria necessidade de intervenção legislativa.
Para concluir, arremata: “Os particulares são regidos, na maior parte dos casos, por critérios insubsumíveis a padrões de racionalidade objetiva, a consensos sobrepostos ou standards próprios do Direito Público. Essa é uma das fontes privilegiadas da especificidade do Direito Civil. Ela fornece pistas para que se compreenda porque a formação intelectual mais elevada não é garantia de prosperidade econômico-financeira ou porque mecanismos de proteção às partes débeis terminam por falhar ante a auto exposição dos indivíduos ao risco”[16].
Evidente que qualquer posicionamento judicial em sentido contrário apenas distorceria o ordenamento. De fato, com a supressão da tarifação legal expressa, como diriam Pires de Lima e Antunes Varela, “em lugar da equidade, passaria imperar o arbítrio ou a insensatez do juiz”[17].
Por fim, para aqueles que reconhecem ao consumidor o direito de mera desistência (sem justa causa) do negócio jurídico celebrado, a cláusula penal teria a característica de multa liberatória, caso em que “ao juiz, portanto, em princípio, não é dado interferir no sentido de aumentar ou diminuir a multa, porquanto sempre haverá, por parte do devedor, o direito de, ao invés de pagar a multa, cumprir a obrigação”[18].
Em conclusão: (i) o artigo 53, do CDC, vedava a estipulação da perda total na hipótese de resolução por inadimplemento do preço, (ii) a jurisprudência arbitrou, caso a caso, a modulação que entendeu como a mais justa, não aplicando a cláusula penal prevista em contrato, (iii) agora, a nova lei tarifa o montante máximo da cláusula penal, (iv) as expressões legais “até” ou “no máximo” são dirigidas às partes e não ao magistrado, (v) o artigo 413 do CC não se aplica às cláusulas penais tarifadas em lei, (vi) os limites máximos legais servirão de parâmetro ao magistrado para redução, até o limite agora tarifado, da cláusula penal prevista em contrato celebrado anteriormente e em montante superior ao hoje regrado.
[1] A reposição das partes em seu estado inicial é decorrência lógica do inadimplemento, em meio à própria estrutura do direito das obrigações. VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. 7ªed. V.II. Coimbra: Almedina, 2014, p.277. Gomes, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 182.
[2] STJ. Resp n.º 80.036-SP. Rel. Min. Ruy Rosado Aguiar. Quarta Turma. V.u. julg. em 12 de fevereiro de 1996.
[3] TUCCI, Rogério Lauria e AZEVEDO, Álvaro Villaça. Tratado da locação predial urbana. São Paulo: Saraiva, 1980, Vol.1, p. 59.
[4] Jayme, Erik, Identité culturelle et integration: Le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, Doordrecht: Kluwer, 1995, p.36 e ss.
[5] Marques, Claudia Lima; Benjamin, Antônio Herman V.; Miragem, Bruno.Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 5ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 40 e 75.
[6] STJ. Resp n.º 80.036-SP. Rel. Min. Ruy Rosado Aguiar. Quarta Turma. V.u. julg. em 12 de fevereiro de 1996.
[7] Contratos do código de defesa do consumidor, 6ª ed., São Paulo: RT, p.653-654.
[8] “Lei n. 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e também posterior ao Código de Defesa do Consumidor – CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos arts. 26 e 27 da lei especial”. (4ª Turma, AgRg no AgRg no REsp n.º 1.172.146/SP, Rel. Ministro ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, unânime, DJe de 26.05.2015). Cf. (4ª Turma, REsp n.º 250.072/RJ, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, unânime, DJU de 07.08.2000) e AgRg REsp n.º 1.172.146-SP; REsp n.º 975.826, REsp n.º 1.535.926.
[9] REsp n.º 591.692/RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Dje.14.03.2005.
[10] RE n.º 636.331/RJ, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Dje. 25.05.2017.
[11] CRETELLA NETO, José. Da cláusula penal nos contratos empresariais – Visão dos tribunais brasileiros e necessidade de mudança de paradigma. Revista de Processo, v. 245, 2015.
[12] THEODORO JR., Humberto. Direitos do consumidor (a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do Direito Civil e do Direito Processual Civil). 7ª. ed. Rio de Janeiro: Gen e Forense, 2011.
[13] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Distinção sistemática e autonomia epistemológica do Direito Civil Contemporâneo em face da Constituição e dos direitos fundamentais. São Paulo: Gen, 2018, p.329.
[14] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Op. cit., p.328.
[15] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Op. cit., p.326.
[16] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Op. cit., p.327.
[17] Código Civil Anotado, 4ª. ed., Coimbra: Coimbra, v.II p. 82.
[18] FRANÇA, Rubens Limongi. Teoria e prática da cláusula penal. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 258. Comentário ao art. 920, do Código Civil de 1916.
Fonte: Conjur.