Caros,
segue abaixo artigo, de autoria de nosso colaborador Alexandre Gomide, publicado no site Migalhas:
Após retornar de viagem ao Brasil, lendo uma sentença de caso em que atuei1, deparo-me com a seguinte frase:
“Quanto ao desejo de rescindir o contrato, temos que este é garantido a qualquer parte integrante de um acordo, já que ninguém é obrigado a manter-se no cumprimento de um negócio ao qual não mais lhe interessa“.
Fechei os olhos e li mais atentamente. A frase continuava lá e, para minha enorme surpresa, nos exatos termos retratados acima.
A considerar que estamos em tempos de incertezas econômicas e políticas, cheguei a pensar que, durante minha ausência, o CC poderia ter sido revogado. Entrei no site do Planalto Central e, (ufa!), vi que a lei 10.406/02 ainda vigia.
De fato, não poderia ser do dia para a noite que a vinculação das partes aos contratos deixaria de existir.
Diante disso e a considerar que, de fato, há operadores do Direito que pensam da forma como pensou a magistrada naqueles autos, é necessário fazer uma pequena ponderação sobre a extinção dos contratos.
Uma vez firmado o contrato, desde que não ultrapassados os limites impostos pelo Direito Civil e preenchidos os seus elementos de existência, requisitos de validade e fatores de eficácia, a forma natural de sua extinção é o adimplemento contratual. Contrato significa troca de riquezas e o objetivo é que eles sejam cumpridos. Para isso, necessário que as partes fiquem vinculadas ao contrato.
De qualquer forma, algumas circunstâncias autorizam que o contrato seja extinto pelas partes ou por uma das partes, ainda que o objeto do contrato não tenha sido adimplido. São essas as principais hipóteses:
1) Distrato.
Etimologicamente, do latim resilire, a resilição significa: “voltar atrás”2. O distrato, como nos ensina Carlos Alberto Bittar3, é o acordo por meio do qual as partes põem fim à relação contratual, denominando-se, pois, contratus contrarius. É contrato feito para extinguir outro.
2) Resilição unilateral.
Em consonância com José Fernando Simão4, a resilição unilateral é a faculdade concedida por lei, em determinados casos, de a vontade de apenas uma das partes pôr fim ao contrato. Segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery5, a resilição unilateral é o gênero do qual são espécies a denúncia e a revogação. Vejamos as espécies de resilição unilateral:
a. Denúncia:
Com a maestria de sempre, Pontes de Miranda6 afirma que, nas relações jurídicas duradouras, é preciso que possa ter ponto final o que se concebeu em reticência. Porque relação jurídica duradoura a que não se pudesse pôr termo seria contrária às necessidades da livre atividade dos homens. Daí a figura da denúncia, com que se ‘des-nuncia’, pois resulta de haver atribuído a algum dos figurantes o direito formativo extintivo, que é o de denunciar.
A denúncia, portanto, objetiva pôr fim às relações que se perduraram no tempo. Como o direito não admite que as partes fiquem vinculadas eternamente, a denúncia tem por escopo cessar os efeitos do contrato.
A denúncia realiza-se nos contratos de tempo indeterminado; de execução continuada ou periódica; contratos benéficos e de prestação de serviços não esporádicos, ou eventuais7.
b. Revogação
Conforme Flávio Tartuce8, a revogação é uma espécie de resilição cabível quando há quebra de confiança naqueles pactos em que essa se faz presente como fator predominante, tais como a doação e o mandato.
A revogação faz cessar a manifestação de vontade de um dos contraentes. O que se retira é a vox, de modo que se volte ao status quo9. Segundo Araken de Assis10, ao revogar, alguém se desdiz e emite uma vontade oposta à primitiva.
3) Resolução.
a) Resolução sem culpa das partes (ou inexecução involuntária).
Em algumas situações, o contrato resolve-se sem culpa das partes. São as hipóteses de caso fortuito ou de força maior, nos termos do artigo 393, do Código Civil. Trata-se das hipóteses em que a resolução do contrato decorre de impossibilidade superveniente, objetiva, total e definitiva. Assim, caso, por exemplo, houver perecimento do objeto sem culpa das partes, a obrigação se resolve e as partes devem ser recolocadas no estado anterior.
b) Resolução por culpa das partes11
A resolução, em regra geral, pressupõe inadimplemento12. Se um dos contratantes tiver culpa na extinção do contrato, estaremos diante de inadimplemento voluntário, que vai ter como consequência a faculdade da parte prejudicada pedir a resolução do contrato ou seu cumprimento, cabendo cumulativamente o pedido de indenização.
Havendo a inexecução por culpa de uma das partes, segundo o artigo 475, do CC, a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
c) Resolução por onerosidade excessiva.
Por fim, a resolução pode ser decretada nos casos em que for constatada onerosidade excessiva a uma das partes. Conforme a lição de Caio Mário da Silva Pereira13, todo o contrato é previsão e, em todo o contrato, há margem para oscilação do ganho e da perda em termos que permitem lucro e prejuízo. Mas quando é ultrapassado um grau de razoabilidade, que o jogo da concorrência tolera, e atinge-se o plano de desequilíbrio, não pode se omitir do homem o direito e deixar que, em nome da ordem jurídica e por amor ao princípio da obrigatoriedade do contrato, um dos contratantes leve o outro à ruína completa e extraia para si o máximo benefício14.
4) Direito de arrependimento.
Em outra oportunidade15, conceituamos o direito de arrependimento como forma legal de extinção contratual unilateral, imotivada e sem necessidade de pagamento de verba indenizatória, o qual faz cessar os vínculos dos contratos de forma retroativa.
Trata-se de hipótese específica de extinção do contrato, um direito potestativo garantido ao consumidor que pretende desistir da avença contratada à distância, no prazo de até sete dias, nos moldes do art. 49 do CDC.
5) Rescisão.
A má redação do art. 1.092 do antigo CC de 1916 permitia a “rescisão” do contrato em razão de inadimplemento de uma das partes. Felizmente, esse erro legislativo foi superado pelo art. 475 do CC de 200216.
Desse modo, a confusão que se fazia com o emprego do termo rescisão, em vez de resolução, vem ocorrendo em menor número. Raros são os livros que ainda utilizam a rescisão como sinônimo de resilição ou resolução.
No direito brasileiro, entendemos que a rescisão não é a forma mais técnica para indicar determinada forma de extinção do contrato. Quando o operador do direito se depara com o termo rescisão, deve investigar qual a razão para a extinção daquele negócio jurídico para verificar, no caso concreto, se é caso de resolução ou resilição.
Assim, por exemplo, o CC brasileiro emprega o termo rescisão em apenas quatro situações. São elas: artigos 455, 607, 609 e 810. Em todas as situações é fácil notar que apesar da palavra rescisão, estamos diante de hipóteses de resolução ou resilição17.
De todo modo, considerando-se o corriqueiro emprego do vocábulo “rescisão” na realidade jurídica brasileira, não acreditamos que ele será extinto. Em verdade, grande parte da doutrina entende que a rescisão ainda pode ser utilizada no sentido genérico de extinção do contrato, como ocorre no cotidiano civil e trabalhista18 19.
Feita essa breve introdução à extinção dos contratos, voltemos à frase que me deixou surpreso: “ninguém é obrigado a manter-se no cumprimento de um negócio ao qual não mais lhe interessa”.
Imaginemos alguns exemplos. Casal contrata “buffet” para a festa de casamento. Dias antes do casamento, a empresa “rescinde” o contrato porque não mais lhe interessa o negócio.
Prefeitura de São Paulo contrata empresa para construir árvore de natal nas proximidades do Ibirapuera. No início do mês de novembro, dias antes do início do serviço, a empresa não mais se interessa pelo negócio e “rescinde” o contrato.
Naturalmente o direito civil não autoriza essa “rescisão” contratual. Nosso ordenamento não permite que, em casos assim, por uma mera liberalidade, sem que haja descumprimento da parte contrária, uma das partes, de forma unilateral, ponha fim ao contrato.
Na realidade, caso o “Buffet” ou a empresa responsável pela construção da árvore se negassem a prestar o serviço, o contratante poderia, inclusive, valer-se de instrumentos processuais para compelir as empresas a cumprirem suas obrigações, sob pena de multa diária (art. 461, § 4º, do CPC).
É bem verdade, contudo, que o ordenamento permite, em alguns casos, que uma das partes ponha fim ao contrato, de forma unilateral e imotivada. São os casos de (i) denúncia, pelo locatário, ao contrato de locação vigendo por prazo indeterminado, (i) denúncia, pelo consumidor, dos contratos de execução continuada (assinatura de TV a cabo), direito de arrependimento, dentre outras circunstâncias.
De qualquer forma, o nosso ordenamento ainda determina que os contratos sejam cumpridos. Basta verificar, por exemplo, que o art. 475, do CC, determina que, havendo descumprimento, a parte contrária pode optar pela resolução do contrato ou mesmo o cumprimento da obrigação, ainda que parcial.
Assim, ainda que o “buffet” tivesse, dias antes da cerimônia, informado que não conseguiria o número prometido de garçons, ainda assim o casal poderia exigir o cumprimento da obrigação, mesmo em número reduzido de funcionários. Mas nunca o “Buffet” extinguir o contrato por desinteresse.
Contrato, meus amigos, ainda que não nos interesse mais, como regra geral, ainda nos obriga. E para o nosso bem!
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1 Processo nº 1075104-84.2014.8.26.0100. 23ª Vara Cível do Foro Central. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
2 GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 221.
3 BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 163.
4 SIMÃO, José Fernando. Direito civil: contratos São Paulo: Atlas, 2005. (Série leituras jurídicas: provas e concursos.), p. 74.
5 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 442.
6 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. §3.081, v. 38, p. 294.
7 BITTAR. Direito dos contratos…, p. 162.
8 TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. São Paulo: Método, [s.d.]. v. 3. (Série concursos públicos), p. 215. Nesse mesmo sentido, veja-se WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: obrigações e contratos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 198.
9 PONTES DE MIRANDA. Tratado…, v. 38, §3.075, p. 269 et seq.
10 ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 90.
11 Como bem ressaltou Alberto Gosson Jorge Junior, alguns juristas preferem classificar a resolução por inadimplemento involuntário ou voluntário. Contudo, considerando-se que os danos decorrentes do risco da atividade também são considerados como uma hipótese para resolução do contrato, a melhor classificação é esta ora apresentada (JORGE JUNIOR, Alberto Gosson. Resolução do contrato por inadimplemento do devedor. Revista do Advogado da Associação dos Advogados de São Paulo, Ano XXXII, nº 116, Julho de 2012, p. 8).
12 O descumprimento da obrigação é definido por Antunes Varela como a não realização da prestação debitória, sem que, entretanto, tenha-se verificado quaisquer das causas extintivas típicas da relação obrigacional (VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 7. ed. [S.l.]: Almedina, 2006. v. 2, p. 62).
O descumprimento é considerado definitivo sempre que a prestação não tenha sido realizada e já não possa mais ser. Já o cumprimento defeituoso, segundo Pedro Romano Martinez, corresponde a uma desconformidade entre a prestação devida e a que foi realizada (In: MARTINEZ, Pedro Romano. Cumprimento defeituoso: em especial na compra e venda e na empreitada. [S.l.]: Almedina, 1994, p. 143).
13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975. v. 3, p. 162.
14 Nas palavras de Ênio Zuliani, “a onerosidade excessiva é a metamorfose surpreendente da prestação a cumprir, sinônimo de excesso de peso de carga econômica do contrato de execução continuada ou diferida, constituindo um desvio a ser superado para salvaguarda dos interesses legítimos” (ZULIANI, Ênio. Resolução do contrato por onerosidade excessiva. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coordenadores). Teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 655).
15 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Direito de arrependimento nos contratos de consumo. São Paulo: Almedina, 2014.
16 Como nos alertam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a Lei de Licitações (8.666/93) ainda prevê a “rescisão” de contratos administrativos em face da inexecução total ou parcial do contrato (GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Contratos: teoria geral. Novo curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 4, t. I, p. 256).
17 O artigo 607, por exemplo, estabelece que o contrato de prestação de serviço será extinto com a morte de qualquer das partes, pelo escoamento do prazo, pela conclusão da obra ou “pela rescisão do contrato mediante aviso prévio”. Trata-se, em verdade de denúncia do contrato, ou seja, hipótese de resilição unilateral.
Já o artigo 810, que trata da Constituição de Renda, determina que se o rendeiro ou censuário “deixar de cumprir a obrigação estipulada, poderá o credor de renda acioná-lo”, sob pena de rescisão do contrato. Nesse caso, estamos diante de uma clara hipótese de descumprimento contratual, o que enseja a resolução contratual, nos termos do artigo 475.
18 GAGLIANO e PAMPLONA FILHO. Op. cit., p. 256.
19 Ademais, conforme manifestou Francisco Eduardo Loureiro, inegável, no entanto, que a ampla utilização do termo rescisão pelos operadores do direito, tanto advogados em negócios jurídicos, como juízes em sentenças, ganhou sentido muito mais amplo e sedimentado pelo costume: passou a ser gênero de extinção do contrato, do qual são espécies a resilição bilateral ou unilateral, com origem na vontade das partes, e a resolução, com origem no inadimplemento ou na onerosidade excessiva (Extinção dos contratos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coordenadores). Teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 611).