Apresenta-se hoje aos leitores da coluna “Direito Comparado” a já tradicional retrospectiva do ano, com ênfase no Direito Civil. Agradece-se aos leitores pela fidelidade e a eles também se pede desculpas por ter sido o ano de 2018 extremamente irregular em termos de colunas neste prestigioso espaço da Conjur. Esta coluna divide-se em três capítulos: a análise das principais mudanças legislativas; a exposição de algumas obras relevantes publicadas em 2018 e, por fim, a apresentação de algumas efemérides.
Infelizmente, assim como em 2017, este ano finda-se com um saldo legislativo nada positivo, em especial para o Direito Civil.
A Lei n. 13.786, de 27 de dezembro de 2018, que dispôs sobre a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano, é um desses exemplos. A nova lei altera as Leis ns. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, trazendo, de entre outras modificações, as seguintes: a) no âmbito da incorporação imobiliária, especificamente em relação a seus negócios formativos (compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas integrantes), deverá ser apresentado um quadro-resumo das principais obrigações assumidas pelas partes, com a indicação precisa dos elementos componentes do custo total da operação e como ela poderá ser liquidada, com informações sobre as consequências jurídicas de cada ato; b) institucionalizou-se a mora de 180 dias dos incorporadores na entrega dos imóveis, retirando-se qualquer efeito jurídico desse retardo. A lei criou uma espécie de “mora à brasileira”, uma mora com termo de graça preestabelecido em favor da parte mais forte; c) a resolução ou a resilição unilateral do contrato (hipóteses absolutamente distintas segundo a boa técnica jurídica, mas tratadas de modo igual pela lei) implicará a restituição das quantias pagas, abatido esse valor da comissão de corretagem e da “pena convencional” de até 25% do valor pago. Em mais outro assassínio da boa técnica, cria-se uma nova modalidade de cláusula penal com teto prefixado e não vinculada ao inadimplemento (necessariamente) culposo. Haverá choro e ranger de dentes para se explicar esse assunto em sala de aula.
Disposições aproximadas passam a ser adotadas nos loteamentos, embora com valores distintos e com linguagem um pouco diferenciada, como, v.g., a menção expressa ao termo “cláusula penal”.
A nova lei peca ao usar terminologia jurídica ultrapassada ou pouco técnica (v.g., rescisão por resolução ou resilição; desfazimento), além de estabelecer regras que ignoram a dramática realidade dos negócios imobiliários no Brasil, na qual prevalece (em muitos casos) a busca por metas de vendas, a omissão de informações, a assimetria informacional (embora adequadamente tratada na previsão do quadro-resumo) e no despreparo dos consumidores para operar em um segmento especializado no qual as finanças familiares são comprometidas na aquisição de imóveis para uso residencial. Essa lei é um exemplo de quão degradadas as relações de consumo terminaram no país em 2018 e da fragilidade das associações de defesa dos consumidores em pressionar o Congresso para resguardar os interesses desse imenso grupo.
A Lei n. 13.777, de 20 de dezembro de 2018, que alterou o Código Civil e a Lei de Registros Públicos, dispôs sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro. Trata-se de uma inovação importante porque cria legalmente um direito real cuja existência havia sido admitida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça como sendo oriunda da autonomia privada,[1]com forte influência da tese de Gustavo Tepedino[2].
De acordo com a nova lei, a multipropriedade “é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada” (art.1.358-C, Código Civil). A multipropriedade pode ser instituída por ato entre vivos ou por testamento, mediante registro imobiliário, devendo-se fixar no ato a duração dos períodos que a corresponderão cada fração de tempo (art.1.358-F, Código Civil). O objeto da lei é estrito, não recaindo sobre bens móveis.
A duplicata escritural passou a ser emissível após a Lei n. 13.775, de 20 de dezembro de 2018, o que, na prática, introduz no Direito Comercial brasileiro a vulgarmente denominada “duplicata eletrônica”. Sua principal característica recai no fato de que seu lançamento se dará “em sistema eletrônico de escrituração gerido por quaisquer das entidades que exerçam a atividade de escrituração de duplicatas escriturais” (art.3º, caput). Aplicam-se subsidiariamente a essas duplicatas escriturais as regras da Lei n. 5.474, de 18 de julho de 1968.
No âmbito das relações “dos órgãos e entidades dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o cidadão” tornaram-se dispensáveis: a) o reconhecimento de firma, o qual pode ser suprido pelo agente administrativo; b) autenticação de cópia de documento, “cabendo ao agente administrativo, mediante a comparação entre o original e a cópia, atestar a autenticidade”; c) a juntada de documento pessoal do usuário, “que poderá ser substituído por cópia autenticada pelo próprio agente administrativo”, dentre outros documentos, nos termos da nova Lei n. 13.726, de 8 de outubro de 2018.
Em mais um capítulo da novela legislativa sobre os limites e a natureza do poder familiar no Brasil, a Lei n. 13.715, de 24 de setembro de 2018, alterou o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil, “para dispor sobre hipóteses de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente”. Com a nova redação dada ao art.23, parágrafo segundo, do Estatuto da Criança e do Adolescente, a condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, salvo se houver sentença condenatória por “crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente”. O art.1.638 do Código Civil foi acrescido de um parágrafo único, que também prevê a perda do poder familiar por ato judicial para aquele que praticar, contra outrem que também exerça o mesmo poder familiar, delitos como, dentre outros, homicídio, feminicídio, estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão. Idêntica pena privada recairá sobre quem praticar contra filho, filha ou outro descendente delitos como homicídio, feminicídio, estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão.
Uma importante mudança legislativa foi a Lei n.13.709, de 14 de agosto de 2018, que tratou do regime jurídico da proteção de dados pessoais no Brasil. O legislador nacional fez uma clara opção pelo modelo europeu de proteção de dados, situando-os no âmbito dos direitos da personalidade, o que dará aos civilistas um enorme espaço para estudar dogmaticamente esse tema. A Medida Provisória n.869, de 27 de dezembro de 2018, alterou a lei de proteção de dados pessoais, ainda em vacatio legis, para criar a autoridade nacional (expressão juridicamente ambígua e que se não louva nas tradições onomásticas do Direito brasileiro) que regulará a matéria e cuidará das sanções respectivas.
A velha Lei de Introdução ao Código Civil, cujo nome foi até hoje alterado de modo inexplicável para Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, foi modificada substancialmente pela Lei n.13.655, de 25 de abril de 2018, com o acréscimo dos arts.20 a 30. As novas regras têm por âmbito de incidência prevalente o Direito Administrativo, mas merecem o estudo sistemático dos civilistas.
No campo literário, assistiu-se ao enfraquecimento do mercado bibliográfico em geral, com efeitos diretos para o mundo jurídico. A Saraiva, editora de referência para o Direito, ingressou no regime da recuperação judicial. Muitas casas publicadoras diminuíram seus lançamentos ou se voltaram para o mercado de obras para cursinhos preparatórios. As novas tecnologias e a mudança de hábitos dos leitores põem em causa o futuro do livro como uma ferramenta essencial da criação, da transmissão e da preservação do conhecimento.
Em 2018, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo, demonstrou sua pujança na produção de conhecimento com a edição de diversas obras no Direito Civil e no Direito Romano, ao exemplo das seguintes: Bernardo Queiroz de Moraes lançou o livro “Parte Geral do Código Civil. Temas de Direito Privado” (São Paulo: YK, 2018), agraciado com prêmio da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Eduardo Marchi publicou “Direito de laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil” (São Paulo: YK, 2018), que retoma estudos anteriores com base no Direito Romano. Silmara Chinellato lançou a décima primeira edição do “Código Civil Interpretado” (Barueri: Manole, 2018), obra da qual é coordenadora.
Este colunista publicou a versão comercial de sua tese de livre-docência, sob o título “Direito civil contemporâneo: estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais”, editada no Rio de Janeiro, pela Forense Universitária, com prefácio e apresentação do catedrático Menezes Cordeiro, da Universidade de Lisboa, e do ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal.
Ainda nos espaços das Arcadas e seus docentes, registra-se o lançamento do liber amicorum “Direito Empresarial, Direito do Espaço Virtual e outros desafios do Direito” (São Paulo: QuartierLatin, 2018), em homenagem a Newton de Lucca, respeitado professor titular de Direito Comercial da USP. A coordenação da obra coube à também titular de Direito Comercial da USP, professora Paula Forgioni, ao lado de Patrícia Del Nero, Renata Maciel Dezem e Samantha Meyer-Plug. Diversos professores do Largo de São Francisco escreveram capítulos para este livro.
Renata Carlos Steiner publicou sua tese de doutorado defendida na USP, com grande qualidade, cujo título é “Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo” (São Paulo: QuartierLatin, 2018). Ruy Camilo Junior editou o atualíssimo livro “Direito societário e regulação econômica” (Barueri: Manole,2018).
Elimar Szaniawski, da Universidade Federal do Paraná, publicou “Diálogos com o direito de filiação brasileiro” (Belo Horizonte: Forum), com prefácio de Rodrigo Xavier Leonardo. O ministro Raul Araújo Filho, do Superior Tribunal de Justiça, ao lado de Edílson Pereira Nobre Jr. (desembargador do TRF-5) e de Bruno Carrá (juiz federal do TRF-5), coordenaram a obra coletiva “Estudos sobre a administração pública e o combate à corrupção : desafios em torno da Lei n. 12.846/13” (Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários,2018), com vários capítulos analisando a Lei Anticorrupção e suas relações com o Direito Público e o Direito Privado.
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, foi reverenciado com o lançamento do livro “Transformações no Direito Privado nos 30 anos da Constituição: Estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin” (Belo Horizonte: Forum, 2018), organizado por Marcos Ehrhardt Jr. e Eroulths Cortiano Junior. Essa obra contou com a participação de dezenas de autores, dentre os quais, em coautoria, este colunista e o professor Rodrigo Xavier Leonardo, da Universidade Federal do Paraná.
Em 2018, publicou-se a quinta edição da tradução para a língua portuguesa da “Autobiografia”, de Hans Kelsen (tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto, com estudo introdutório de Otavio Luiz Rodrigues Jr. e do ministro José Antonio Dias Toffoli). Esse livro é o primeiro volume da Coleção Paulo Bonavides. Dario Moura Vicente, catedrático da Universidade de Lisboa, lançou a quarta edição de seu livro “Direito Comparado, volume 1, pela Almedina (Lisboa, 2018). Em 23 de janeiro de 2019, ele lançará no Brasil os dois volumes dessa importante obra lusófona.
No Reino Unido, publicou-se o livro “Regulating risk through Private law” (Cambridge: Intersentia, 2018), coordenado por Matthew Dyson, atualmente professor da Faculdade de Direito da Universidade de Oxford. O livro reúne estudos de pesquisadores de 9 países (Reino Unido, Suécia, Espanha, Holanda, Brasil, Chile, África do Sul, Itália e França) sobre os temas mais atuais da Responsabilidade Civil em seus respectivos campos de estudo. Do Brasil, participaram os professores da Faculdade de Direito da USP Ignacio Poveda, Eduardo Tomasevicius Filho e Bernardo Queiroz de Moraes, além deste colunista.
A editora alemã De Gruyter publicou a tese de doutorado de Karina Nunes-Fritz, intitulada “Die culpa in contrahendo im deutschen und brasilianischen Recht: Ein Vorvertragsregime auf der Grundlage der deutschen Schuldrechtsdogmatik”, que integra a série de escritos sobre Direito Europeu, Bancário, Comercial e Internacional Privado dessa casa editorial. A tese foi agraciada como a melhor em Direito Civil na Universidade Humboldt de Berlim em 2018. Ainda na Alemanha, Anatol Dutta e Christian Heinze editaram os estudo em homenagem ao jubilamento de Jürgen Basedow, cujo título principal é »Mehr Freiheit wagen« (Tübingen: MohrSiebeck, 2018), com prefácio de Reinhard Zimmermann e Holger Fleischer. Basedow foi co-diretor do Instituto Max-Planck de Hamburgo, colega dos prefaciadores. O livro reúne escritos de seus ex-alunos e abrange áreas como Direito Comparado, Direito Civil, Direito do Trabalho e Direito Comercial.
A Revista de Direito Civil Contemporâneo, que completou 4 anos em 2018, efeméride registrada em belíssima coluna do ministro Humberto Martins, ofereceu ao público lusófono alguns artigos estrangeiros de grande impacto. Claus-Wilhelm Canaris abordou o tema “O ‘contato social’ no ordenamento jurídico alemão” (RDCC, v. 16, p. 211-219, jul./set. 2018) e Marie-Christine Fuchs escreveu sobre “O efeito irradiante dos direitos fundamentais e a autonomia do direito privado : a ‘decisão Luth’ e suas consequências”, também no volume 16. Ambos os textos com tradução e notas deste colunista e de Patrícia Candido Alves Ferreira.
Nas efemérides, 2018 marcou o aniversário do caso Lüth, o mais importante da História do Tribunal Constitucional alemão, o que foi objeto de um artigo do ministro Dias Toffoli e deste colunista no jornal Folha de S. Paulo. Importantes ainda os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição italiana de 1948, além dos 30 anos da Constituição brasileira de 1988. Quanto a estas duas últimas efemérides, Marcílio Toscano Franca Filho e este colunista escreveram em referência na ConJur.
O ano que se encerrou também foi marcado pela concessão do título de doutora honoris causa da Universidade de Giessen, Alemanha, a Claudia Lima Marques, professora titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rodrigo Xavier Leonardo tornou-se chefe do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Faculdade de Direito da UFPR.
A Rede de Direito Civil Contemporâneo enriqueceu-se em 2018 com o ingresso de novas instituições, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do Amazonas, além da Universidade de Roma II-TorVergata.
Diversos eventos organizados pela Rede e pelo Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP também ocorreram em 2018, como o congresso internacional com a Universidade Humboldt de Berlim, as jornadas luso-brasileiras de direito do autor, coordenado pela professora titular Silmara Chinellato e pelo professor associado Antonio Carlos Morato, o ciclo de conferências do catedrático Christian Baldus, da Universidade de Heidelberg, e as conferências de Benjamin Herzog sobre a epistemologia do Direito Civil alemão e brasileiro, que ocorreram em várias universidades brasileiras.
A Coordenação da Área do Direito da CAPES, em 2018, voltou a ser dirigida por um civilista, algo que ocorreu pela última vez há mais de uma década, com o atual ministro Edson Fachin. Por ato do Ministro da Educação, este colunista foi designado para um mandato de 4 anos à frente dessa importante missão institucional.
Aos leitores, deseja-se um feliz começo de 2019. As esperanças são sempre renovadas nesta época do ano e, para o Direito Civil, cujas tradições e lastro histórico servem de guia para seu futuro, com ainda maior necessidade. Mais respeito pela boa técnica, mais coerência legislativa e mais dogmática de qualidade são os votos para esta jornada que se (re)inicia.
[1] STJ. REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016.
[2]TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. Saraiva: São Paulo: 1993.
Fonte: Conjur