Assistiu-se, nos últimos anos, a um desenfreado crescimento de demandas que discutem diversas consequências provocadas por adquirentes de unidades imobiliárias que incorrem em mora no pagamento de suas prestações, ou, ainda, reflexos causados por incorporadores que atrasam a entrega dessas unidades. Com o fim de criar alguma previsibilidade para o mercado imobiliário e seus protagonistas, editou-se, em 27/12/2018[1], a Lei 13.786, que disciplina “a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária” (em “incorporação imobiliária ou em parcelamento de solo urbano”).
Destacam-se na legislação alguns aspectos muito sensíveis para o mercado imobiliário, como a aplicação do prazo de reflexão de sete dias para desistir do negócio, no caso de aquisição em estande ou fora da incorporadora, limites para a estipulação de cláusula penal e a estipulação legal de “indenização”, independentemente de dano, aproximando a hipótese de uma sanção legal e distanciando-a da responsabilidade civil, pois o dano não se presume. E, em todos esses pontos, debaterão os aplicadores se tais inovações podem incidir sobre os contratos anteriores.
São muitos os aspectos polêmicos trazidos por essa inovação legislativa, com intensa polarização entre defensores e opositores. De um modo geral, e sem pretender ingressar no acalorado debate, esclareça-se que muito pouco há de novo, sobretudo frente ao avanço da jurisprudência, que essa legislação em grande parte reflete. Busca-se, neste breve ensaio, apenas compartilhar algumas reflexões e soluções possíveis para o complexo tema do direito intertemporal (ou transitório), identificando a possibilidade, ou não, em termos dogmáticos, de aplicação da Lei 13.786/18 aos contratos celebrados antes de sua entrada em vigor. Não surpreenderá, inclusive, se essa polêmica tornar-se a maior dificuldade para o Judiciário, visto que os contratos posteriores já nascerão adequados às novas regras, sob pena de nulidade (artigo 166, II, do CC).
Ilustra-se o desafio com alguns problemas: a) o novo limite legal para a cláusula penal, de 25% ou 50% (se a incorporação está sujeita ao regime da afetação), pode incidir sobre a mora ocorrida hoje, relativa à prestação de contrato anterior?; b) os novos requisitos de validade (interpretação sistemática com o artigo 166 do CC) do contrato (“quadro resumo”) podem ser impostos aos contratos anteriores?; c) a cláusula que autoriza a entrega após 180 dias se aplica aos contratos anteriores?; d) a “indenização” de 0,5% devida ao adquirente, por atraso na entrega, aplica-se aos contratos anteriores?
Antes de respondê-las, é preciso adotar algumas essenciais premissas que servirão como percurso necessário: (i) o artigo 5º, XXXVI, da CF, assegura direito individual aos titulares de determinadas situações jurídicas — ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido — de não sofrerem os efeitos de novas leis; (ii) o artigo 6º, da LINDB, consentânea com o comando constitucional, determina a aplicação imediata da nova lei, desde que respeitadas essas três referidas situações jurídicas; (iii) a doutrina costuma destacar as visões de Roubier e Gabba sobre o tema. Para Roubier, a lei nova poderia ser aplicada aos efeitos posteriores de ato jurídico anterior — embora excepcione expressamente os contratos — sem malferir a regra da irretroatividade das leis, porque haveria uma aplicação imediata, e não uma retroatividade propriamente (dita retroatividade em grau mínimo, fonte principal das dissensões). Já para Gabba, o limite para a aplicação da nova lei seria o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.
De um lado, a doutrina civil inclina-se, majoritariamente, em favor da teoria objetiva de Paul Roubier. De outro lado, o STF (v.g.: ADI 493) e o STJ (v.g.: Súmula 285), ao lado de grandes constitucionalistas, entendem que o sistema brasileiro, diferente do que ocorre na França e na Itália, optou pela teoria subjetiva de Gabba, de modo a proteger as três citadas situações jurídicas. E isso porque naqueles dois países europeus, tal como ocorre na Alemanha, não há regra constitucional tratando do tema, o que permitiu um espaço maior de reflexão por parte dos doutrinadores, com destaque para Gabba e Roubier.
Diverge-se sobretudo, como dito, em relação à dita retroatividade mínima, que muitos não consideram ser, propriamente, forma de retroatividade, mas aplicação imediata da nova lei. Responde-se ao argumento com uma explicação que, a nosso sentir, mostra-se contundente, tendo sido acolhida pelo STF na ADI 493: se a lei nova, a pretexto de ser aplicada a efeitos (eficácia) posteriores de ato jurídico anterior, indiretamente ofender a causa deste efeito (o ato jurídico anterior, por exemplo), ela será retroativa, e, portanto, absolutamente incompatível com a opção constitucional brasileira (artigo 5º, XXXVI). Seria o caso de a multa do contrato de promessa de compra e venda ser estipulada em certo percentual, diverso da nova lei. Nesse caso, embora a lei realmente se aplique a efeito posterior de ato jurídico anterior, constata-se que essa mora, fato posterior, decorre do descumprimento de cláusula constante de ato anterior, ou seja, a aplicação imediata da nova lei indiretamente retroagiria para alcançar um ato jurídico perfeito e a cláusula penal nele estipulada. Esse, aliás, para além da ADI 493, foi o raciocínio utilizado nos precedentes que culminaram na Súmula 285 do STJ. Na ocasião, o artigo 52, parágrafo 2º, do CDC, havia sido alterado para reduzir o percentual de multa de 10% para 2%, entendendo o STJ que os contratos anteriores deveriam ser respeitados, caso previssem multa de 10%, ainda que o atraso ocorresse após a entrada em vigor da Lei 9.298/96. Note-se ser indiferente, no Brasil, ao contrário do que ocorrem em alguns países da Europa, o critério da lei ser, ou não, de ordem pública, pois o tema aqui, reitere-se, tem sede constitucional.
Vê-se que o problema não parece recair propriamente sobre a irretroatividade das leis — que a CF, aliás, não proíbe expressamente —, mas de limites à aplicação imediata da nova lei. Por essa linha de raciocínio e pela perspectiva brasileira, e não pela teoria de Roubier, que excepciona os contratos, não parece adequado, por si só, dizer que a lei nova não se aplica aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor. O problema, ao revés, é verificar, no caso concreto, se tal aplicação irá, direta ou indiretamente, desrespeitar o ato jurídico perfeito. Respeita-se, em última análise, o princípio da autonomia privada, materializada no ato jurídico perfeito.
Concretiza-se, por esse raciocínio, o princípio da proteção da confiança, pelo qual se veda que o Estado de Direito crie expectativa legítima no cidadão e a frustre. No caso, criar um ato jurídico em conformidade com a legislação de certa época, para, contraditoriamente, desmentir-se a afirmação, porque o próprio Estado desejou alterá-la. Dito de outro modo, não se pode entregar ao cidadão com uma mão, para tirar-lhe com a outra.
Assim, fixadas tais premissas, passa-se ao enfrentamento das hipóteses suscitadas no início deste ensaio. Sobre a primeira (“a”), já enfrentada acima e prevista no artigo 67-A, pensamos que deva ser observado o contrato aquisitivo, em geral uma promessa de compra e venda ou a cessão da posição neste negócio jurídico. Se não houver previsão negocial estipulando o percentual, a título de cláusula penal, será possível aplicar imediatamente a nova lei. Perceba-se, neste caso, que não haverá ato jurídico perfeito violado. De acordo com o artigo 6º da LINDB, interpretado em conformidade com o artigo 5º, XXXVI, da CF, haverá mera aplicação imediata da lei nova sem violar o ato jurídico perfeito. Por outro lado, se o contrato de promessa de compra e venda ou cessão prevê um percentual a título de cláusula penal, pouco importando se inferior ou superior ao fixado pelo artigo 67-A, tal estipulação estará constitucionalmente imune à aplicação da nova lei. Em outras palavras, a eficácia posterior do ato jurídico anterior estará protegida contra a eficácia da nova lei. Afinal de contas, quando a CF estabeleceu que a lei nova não pode violar o ato jurídico perfeito, não distinguiu, por óbvio, os efeitos posteriores dos anteriores à entrada em vigor da lei nova, tutelando-o como um todo.
O artigo 35-A, pela sua própria natureza, é incompatível com a aplicação imediata, pois os requisitos impostos por ocasião da contratação foram observados, ou seja, incorporaram-se ao ato jurídico perfeito. Isso geraria uma nulidade a posteriori, sendo sabido que a validade de um ato deve ser examinada contemporaneamente à sua formação. Inclusive, o polêmico artigo 2035 do CC, que parte da doutrina considera inconstitucional, ao admitir que os efeitos posteriores de ato jurídico anterior se submetam à nova lei, ressalvou que a validade deve ser verificada conforme a legislação anterior. Perceba-se que esse artigo 2035 não se aplica à Lei 13.786/18, pois cuidou, pontualmente, da transição entre o CC/16 e o CC/02. De todo modo, embora realmente preveja a aplicação imediata, pensamos que o artigo, por certo, não autoriza que essa aplicação ofenda ato jurídico perfeito, interpretando-o em conformidade com a CF.
O artigo 43-A não se aplica aos contratos anteriores, pois, expressamente, o próprio dispositivo exige prévia pactuação, de modo que a ausência de tal cláusula não afastará a mora do incorporador imobiliário. Já a previsão de “indenização” — por dano presumido, aproximando-a de sanção e não de indenização propriamente dita — em favor do adquirente, prevista no parágrafo 2º, aplica-se automaticamente por se tratar de fato — mora — ocorrido depois da entrada em vigor, ressalvada, claro, a hipótese de o contrato estipular solução diversa e que deverá ser respeitada.
Enfim, pelas premissas expostas, impõe-se forçosamente verificar se existe, ou não, caso a caso, ato jurídico criador de conteúdo ao negócio jurídico diverso daquele previsto na nova lei. Se houver, respeita-se a autonomia privada e a proteção da confiança. Por outro lado, se não tiver sido estipulado conteúdo em sentido contrário, excepcionado o controle de validade do ato jurídico, que deve ser contemporâneo à sua formação, pensamos que a aplicação imediata da nova lei não afrontará o artigo 5º, XXXVI, da CF.
[1] Publicada em 28/12/2018, entrou em vigor no mesmo dia, por força do artigo 4º dessa própria Lei 13.786/18. Pensamos, porém, ter sido inobservada a regra do artigo 8º da LC 95/98, pois a entrada em vigor da lei na data da publicação deve ser restrita às leis de “pequena repercussão”. Prova-se, facilmente, a grande repercussão dessa lei, com a quantidade significativa de processos que os tribunais de Justiça dos estados, os tribunais federais regionais e o Superior Tribunal de Justiça enfrentam sobre o tema, a ponto, inclusive, de o STJ ter incorporado o tema a sua súmula (Enunciado 543).
Fonte: CONJUR