“O mercado não é bom nem mau, o mercado é racional”, sintetizou o ministro Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao explicar que os negócios reagem de acordo com as oscilações financeiras e as decisões judiciais, constituindo estas “a jurisprudência que indica um modelo de conduta seguro”. A declaração traduz a crescente compreensão do Judiciário quanto aos meandros do mercado imobiliário e foi feita durante o “II Seminário Incorporação Imobiliária na Perspectiva do STJ – A Proteção do Consumidor”, que ocorreu na última quarta-feira (25), em Brasília.
O evento avançou no diálogo que tem sido travado entre o Judiciário e a construção para esclarecer peculiaridades e colaborar para a redução da judicialização das transações imobiliárias. Os palestrantes abordaram a distinção entre consumidor e investidor, as nuances da contratação do crédito imobiliário e a proteção dos consumidores adimplentes. “Traço comum no seminário foi a segurança jurídica”, constatou o ministro. Iniciativa do STJ e do Instituto Justiça & Cidadania, o evento foi correalizado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) e pelo Senai Nacional.
O seminário buscou refletir sobre os rumos da jurisprudência brasileira, ajudando os magistrados a entenderem a sistemática de um mercado tão complexo como o imobiliário. Trazendo representantes do setor produtivo e dos órgãos de proteção ao consumidor para apresentarem seus pontos de vista, contrapondo argumentos e buscando-se pontos de convergência, o seminário cumpriu seu propósito. Presidente do STJ, a ministra Laurita Vaz observou a relevância da discussão levantada. “O tema é importante notadamente para os adquirentes de imóveis, mas não se pode olvidar também dos vários riscos e níveis de investimentos ínsitos à atividade de incorporação imobiliária, a exigir, por conseguinte, naturais preocupações com garantias”, observou.
“O STJ tem a missão de estabelecer as regras para o funcionamento equilibrado do mercado privado. E tem uma tarefa, eu diria secundária, como indutor de debates, mas relevante porque é fundamental para nossa atividade principal, que é julgar bem as causas. Um debate como esse auxilia a formação do melhor entendimento”, disse o ministro Luis Felipe Salomão, um dos coordenadores científicos do evento. “Aqui não se quer a proteção exagerada do consumidor, nem se quer a defesa intransigente do mercado. Os dois lados têm direitos, deveres e responsabilidades”, afirmou o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), Werson Rêgo, segundo coordenador do seminário.
“O diálogo que travamos aqui, de alto nível, aberto e respeitoso é o que precisamos para corrigir distorções e fomentar a segurança jurídica”, disse José Carlos Martins, presidente da CBIC. “O STJ dá mais um sinal de sensibilidade e atenção ao interesse coletivo da sociedade”.
DIÁLOGO ABERTO E QUALIFICADO
Os magistrados do STJ apresentaram a evolução legislativa relativa à incorporação imobiliária, incluindo a Lei nº 4.591/64 e o Código de Defesa do Consumidor (CDC); os marcos legais sobre o direito de arrependimento e sobre o compromisso de compra e venda; além da responsabilidade civil do construtor na jurisprudência do STJ.
O ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro apresentou a história jurídica que envolveu a questão da incorporação, destacando quatro acórdãos, e comentou a “extrema dignidade” presente na atitude do STJ ao amparar ambas as partes dessa relação jurídica. “O Tribunal da Cidadania vem procurando assegurar direitos a quem tem direitos, embasado na ideia de que aqueles que participam de negócios jurídicos precisam ser tratados como pessoas”, disse.
José Carlos Gama, presidente do Conselho Jurídico (Conjur) da CBIC, representando o setor imobiliário, demonstrou a complexidade do negócio e destacou os principais pontos de conflito. No entanto, Gama assegurou que “se deixarmos de ter um cabo de guerra – onde de um lado está o incorporador e do outro o consumidor –, nos dermos as mãos, e a Justiça fizer o que é mais importante, mediar e conciliar, chegaremos a esse Brasil justo”. Ponto alto da apresentação foi o esclarecimento de que, nas questões sobre resoluções/rescisões, não se trata de ter de um lado o adquirente consumidor hipossuficiente e de outro o incorporador construtor, mas sim, de um lado o adquirente consumidor hipossuficiente, e de outro vários adquirentes, também consumidores hipossuficientes. É uma questão de direito individual x direito coletivo.
Ely Flávio Wertheim, integrante do Conselho Fiscal do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP), também falou dos elevados custos do negócio imobiliário e dos riscos inerentes de um investimento de longo prazo – uma obra leva, em média, 60 meses para ser entregue (sem atrasos). Também ressaltou a importância do setor como grande gerador de empregos e abordou a necessidade de se identificar o verdadeiro destinatário da tutela protetiva do CDC.
Já o professor Teotônio Rezende trouxe a experiência do mercado de crédito imobiliário, mostrando os modelos de financiamento e o ponto de vista do mercado financeiro, com seus mecanismos de redução de riscos para sustentabilidade dos negócios.
RESPEITO AOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS
As taxas de distratos subiram de 24%, em 2013, para 43,4%, em 2016, segundo dados apresentados pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro. Tais números geraram um impacto negativo na atividade econômica imobiliária e demonstram como os contratos imobiliários não têm sido respeitados.
“O único lugar do mundo em que acontecem essas rescisões contratuais é no nosso país. O único setor que é obrigado a devolver dinheiro, depois de vários meses, algumas vezes até anos, é o nosso setor da indústria imobiliária”, destacou Flávio Amary, presidente do Secovi-SP. Apontados pelo dirigente como graves consequências desse problema estão: o aumento do trabalho informal e da ilegalidade, maior dificuldade e mais restrições na produção imobiliária, menor oferta de imóveis e elevação dos preços, diminuição dos postos de trabalho no setor e, inclusive, menor acesso à moradia – levando pessoas a criarem novas invasões e “dificultando muito mais para o setor público atender o déficit habitacional do País, fazendo com que isso seja também um problema social”, completou.
Uma das maiores controvérsias, em casos de distratos, é o valor justo retido pela incorporadora quando o contrato é desfeito por parte do consumidor. Magistrados do STJ indicaram que, na prática, vem sendo aceito o percentual de 10% a 25%. De acordo com a ministra Isabel Gallotti, embora seja salutar haver um padrão base de retenção de valores – para não incentivar a desistência do adquirente, nem permitir o enriquecimento ilícito do fornecedor –, é preciso haver um mínimo de previsibilidade para a continuidade do empreendimento. “Não é difícil imaginar a dificuldade do empreendedor de, no curso da obra, não apenas não mais contar com o fluxo de recursos do desistente, mas ainda devolver imediatamente todo o valor já pago, presumivelmente investido na obra, com juros e correção. A retenção de apenas 10% dos valores pagos pelo comprador, com a devolução imediata do restante antes da revenda da unidade, se não era um problema na época de mercado aquecido, pode conduzir atualmente à inviabilidade do empreendimento”, disse.
O presidente do Conjur/CBIC mostrou duas jurisprudências quanto a esse percentual. Uma delas recomenda a revisão da jurisprudência que tem estabelecido limites para retenção de parcelas, pelos promitentes vendedores. “Ou seja, cada caso é um caso, senão não se faz justiça como a sociedade deseja”, disse Gama.
“Do ponto de vista eminentemente jurídico, legal, não há fundamento para alteração da jurisprudência consolidada que estava nos tribunais, especialmente no STJ. Quanto às razões de ordem econômica que poderiam abrir espaço para uma discussão a respeito de ser desejável uma alteração legal, também me parece que há já um processo de superação desse problema do distrato, pontualmente”, considerou Amanda Flávio de Oliveira, presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BrasilCon).
PROTEÇÃO DO INTERESSE COLETIVO
“Sempre que aumenta o número de inadimplência, os adimplentes sofrem, porque certamente o preço será majorado”, declarou o ministro Saldanha Palheiro, recordando que o mesmo problema atinge outros setores, como o de seguros e o de fornecimento de energia elétrica.
Nesse sentido, a CBIC reforçou que é muito importante a defesa do coletivo em detrimento do individual. O presidente da entidade falou das similaridades entre o mercado imobiliário e um consórcio, onde a retirada antecipada de recursos pode causar um colapso no sistema, prejudicando a coletividade. “Por exigências de financiamento, cada empreendimento é uma sociedade de propósito específico (SPE), com patrimônio de afetação. As incorporadoras passaram a ser grandes administradores de SPEs, o mesmo modelo do consórcio”, comparou Martins. No consórcio, a pessoa somente pode retirar sua parte no final. A defesa do setor imobiliário é que, em caso de rescisões contratuais unilaterais, a devolução dos valores aos consumidores não seja de imediato, a fim de não prejudicar o andamento das obras.
O presidente do Conjur/CBIC lembrou que o STJ já mudou jurisprudência em relação a outros temas, como danos morais, e o mesmo deveria ser feito quanto a essa devolução de imediato, da qual trata a súmula 543: “Nós, empresários, não queremos mudar a jurisprudência por causa de crise, mas por questão de justiça. O que se está pleiteando é que se faça uma revisão da súmula, porque isso está trazendo problemas não apenas para o incorporador, mas para os outros compradores adimplentes que precisam receber seu imóvel no tempo determinado. Isso só acontece se não for desviado esse recurso no momento da construção”.
Com a revisão de cláusulas, multas e percentuais de retenção pelas incorporadoras, as empresas passaram a apontar um risco sistêmico para o setor, com dificuldades para conclusão das obras. A busca de um critério objetivo para definição do percentual de deságio e o reequilíbrio das relações contratuais, com diferenciação dos consumidores, são apontados por Saldanha Palheirocomo algumas das soluções para essas questões.
DISTINÇÕES ENTRE CONSUMIDOR E INVESTIDOR
“Para proteger os consumidores é de fundamental importância que esteja claro quem é a figura do investidor e quem é a figura do consumidor, aquele que é o destinatário final”, disse Alessandra Garcia Marques, promotora de Justiça de Defesa do Consumidor e presidente da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPCon).
“Consumidor é aquele que retira o produto do mercado, ele é o destinatário final. A partir do momento em que adquire o imóvel, ele sai do mercado, e não utiliza o produto com a finalidade de lucro”, explicou. Já o investidor é quem faz a aquisição tendo por objeto a exploração de imóveis, aquele que adquire o imóvel em nome de pessoa jurídica ou por tabela especial na condição de investidor. “Nesses casos, temos que afastar as normas protetivas do CDC desses adquirentes”, afirmou a promotora.
O ministro Saldanha Palheiro reconheceu que CDC é bastante vanguardista, no sentido de proteger, “por essencialidade”, os direitos dos adquirentes de bens, produtos e serviços. “Mas não temos uma contrapartida de proteção aos fornecedores desses produtos. Vejo que vai caber efetivamente à jurisprudência estabelecer esses limites”, afirmou.
TEMAS SENSÍVEIS NO JUDICIÁRIO
O ministro Paulo de Tarso Sanseverino apresentou os tipos de processos que chegam ao STJ e indicou alguns temas sensíveis, como a grande polêmica em torno da inversão da cláusula penal em favor do consumidor, sobre a qual já existem precedentes. Outro ponto de discussão é quanto ao pagamento por danos morais no caso de atrasos na entrega de unidades habitacionais. “A posição do STJ evoluiu nos últimos anos para ser mais restritiva à respeito do reconhecimento do dano moral”, explicou o ministro. O dano moral fica, assim, reservado aos consumidores, àqueles casos em que a pessoa adquire o imóvel para moradia; enquanto qualquer prejuízo aos investidores pode ser reparado mediante o pagamento de lucros cessantes. “O dano moral não é presumido e se exige a comprovação de um fato relevante que denote a ocorrência de dano moral efetivamente naquele caso, ou seja, uma violação ao direito à moradia”, completou.
Ainda sobre o descumprimento de prazos para entrega de obras, a ministra Gallotti falou que a Justiça reconheceu a validade da cláusula de tolerância de até 180 dias, desde que claramente informada no contrato e com a notificação do consumidor, durante a execução, acerca do uso da cláusula e o motivo do atraso.
Já a flexibilização dos prazos de garantia e prescrição – especialmente na moradia para população de baixa renda, como é o caso do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) –, bem como a solidariedade entre construtor e incorporadora, e entre construtor e seguradora, constituem outra “questão em aberto que certamente vai ser analisada em seguida”, confirmou o ministro Sanseverino.
EVENTOS SOBRE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
O “I Seminário Incorporação Imobiliária na Perspectiva do STJ”, realizado em junho de 2017, debateu importantes temas: soluções extrajudiciais de conflitos imobiliários, distratos e controvérsias envolvendo a taxa de Serviço de Assessoria Técnica Imobiliária (SATI). Tanto em sua primeira edição quanto nesta segunda, foi sucesso de público ao alcançar a lotação máxima do auditório do tribunal, com a presença de mais de 600 pessoas, entre ministros, magistrados, procuradores, advogados, acadêmicos, estudantes, empresários e representantes do ramo. Neste segundo seminário, estiveram também presentes à mesa representantes da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário do Rio de Janeiro (Ademi-RJ) e da Caixa Econômica Federal.
O atual ciclo de eventos voltados para o setor imobiliário inclui ainda um encontro realizado no TJRJ e outro no Tribunal Superior do Trabalho (TST) – este com o apoio da CBIC e do Sesi Nacional, onde foram analisados e discutidos os efeitos da reforma trabalhista no âmbito da incorporação. No total, cerca de 2.400 pessoas compareceram a esses eventos.
Fonte: CBIC