Por Thiago Rodovalho
Uma questão jurídica que tem sido absolutamente polêmica desde o recente boom imobiliário vivido no Brasil, que agora enfrenta sua crise, diz respeito ao denominado “prazo de tolerância”.
Como regra, as construtoras ou incorporadoras comprometem-se a entregar unidades imobiliárias (imóveis) a serem construídas dentro de um determinado prazo, usualmente de 36 meses, a contar da data contratualmente prevista para o início das obras.
Nesse contexto, esse é, verdadeiramente, o prazo para entrega da unidade imobiliária. Não obstante isso, é absolutamente usual a previsão de um “prazo de tolerância”, geralmente de 180 dias, para mais ou para menos. As quaestiones iuris consistem em saber qual a natureza desse prazo e a forma lícita de seu exercício.
Em nosso sentir, o “prazo de tolerância” não pode se confundir juridicamente com alteração ou prorrogação de prazo. Se a intenção das partes fosse, de fato, alterar ou prorrogar o prazo contratual, haveria a necessidade de efetiva repactuação do aludido prazo, como para 42 meses. Assim, se essa fosse a real intenção das partes, teriam simplesmente consignado no contrato o prazo de 42 meses e não de 36 meses com mais os 6 meses do chamado “prazo de tolerância”.
Deste modo, em nosso sentir, o prazo é sempre aquele contratualmente previsto, de 36 meses, por exemplo.
A previsão de “prazo de tolerância” de seis meses não pode ter o condão de traduzir-se em repactuação (alteração e/ou prorrogação) de prazo, e, sim, ao revés, apenas e tão somente benevolência/concordância antecipadamente concedida pelo credor para que o devedor, ante circunstâncias adversas e inesperadas (inerentes a esse tipo de negócio jurídico), mas que de forma “excepcional” dificultem o pontual cumprimento contrato, possa adimplir a obrigação — e isso desde que “prévia, motivada e justificadamente” informe ao credor a ocorrência dessas circunstâncias excepcionais —, situação na qual o credor, agindo com beneplácito, tolera a postergação do cumprimento da obrigação por um certo período de tempo (“prazo de tolerância”).
Logo, nota-se, a toda evidência, que certos requisitos devem ser exigidos para que, então, o “prazo de tolerância” possa ser utilizado; são eles: (i) a ocorrência de circunstâncias que, conquanto inerentes a esse tipo de negócio jurídico, tenham caráter de excepcionalidade, e cuja ocorrência possa de fato dificultar o cumprimento pontual da obrigação; e (ii) que haja a prévia, motivada e justificada comunicação ao credor da ocorrência dessas circunstâncias excepcionais, inclusive para se aferir o quanto desse prazo excepcional seria justificável admitir ou tolerar.
Somente nessas hipóteses é que o devedor legitimamente faz jus a que o credor — por seu beneplácito/concordância antecipadamente concedidos — lhe tolere a postergação momentânea — por um certo período — do cumprimento da obrigação.
Se assim não fosse, estar-se-ia diante de uma pura potestatividade unilateral. A construtora poderia cumprir sua obrigação modificando unilateralmente o prazo em até um ano (para a hipótese de “prazo de tolerância” de seis meses), haja vista que o “prazo de tolerância” é para mais ou para menos; deste modo, ela poderia antecipar o cumprimento de sua obrigação em até seis meses, optar pelo cumprimento pontual (é dizer, na data efetivamente pactuada), ou, ainda, prorrogar seu cumprimento em até seis meses.
Ou seja, unilateralmente teria até um ano para ajustar o prazo para cumprimento de sua obrigação. Nessa hipótese, o adquirente teria de se preparar, nesse cenário de incerteza, para cumprir com sua obrigação correspectiva (pagar o preço) em datas que poderiam variar em até um ano, sem que tivesse igual direito a unilateralmente poder alterar o prazo para cumprimento de sua obrigação (prorrogá-la por seis meses, v.g.).
Por isso, entendemos que, sem haver circunstância excepcional que possa motivar e justificar eventual tolerância, e sem que haja prévia comunicação ao credor, quando da proximidade do término do prazo original (de 36 meses, por exemplo), dessa excepcionalidade, justificando e solicitando a referida tolerância, seu exercício nos afigura ilegítimo.
A mera previsão de “prazo de tolerância” no contrato, portanto, não se consubstancia em direito do devedor-moroso, e, sim, como dito, em benevolência/concordância antecipadamente concedida pelo credor, cujo uso (exercício) dá-se a partir da ocorrência de circunstância excepcional e pedido justificado.
A ideia de tolerância não é totalmente desconhecida da doutrina, que, de forma uníssona, entende que o significado jurídico do termo “tolerância” está intimamente ligado a uma liberalidade, condescendência, benevolência, não tendo o condão de se traduzir em aquisição de um direito por parte do devedor-moroso, muito menos em renúncia a direito pelo credor.
Nesse sentido, Plácido e Silva,, para quem: “ Tolerância. Do latim tolerantia, de tolerare (atuar), em significação jurídica designa a condescendência, a liberalidade, a permissão, em virtude do que se consente a prática de um ato, ou o aproveitamento de alguma coisa, sem que semelhante concessão importe em se atribuir ao favorecido, ou tolerado, a aquisição de um direito. Por essa razão, os atos de tolerância indicam-se os que são aturados, suportados, sofridos; mas que não implicam na intenção de alterar um estado sobre as coisas, ou sobre os fatos, em que recaem os mesmos atos. Nem mesmo sobre a posse, os atos de tolerância exercem qualquer eficácia: o que simplesmente se tolera é tido como precário, não dá causa à aquisição de direito (Código Civil, art. 497). Praticamente, a tolerância é um obséquio; é mera benevolência, ou bondade”.[1]
Esse nos parece ser o correto significado jurídico do termo tolerância, e não alteração ou prorrogação de prazo.
Em igual sentir é o entendimento da doutrina estrangeira, que enfatiza a inexistência — em atos de tolerância — de qualquer renúncia a direito pelo credor; verbis: “Tolleranza (Atti di). – Si chiamano atti di tolleranza quelli compiuti da persona che non aveva il diritto di effettuarli e che la persona che aveva il diritto di impedirli ha permesso che si compissero per spirito di benevolenza e di correntezza, ma senza rinunziare al suo diritto di vietarli in seguito”.[2]
Isso revela, em nosso sentir, venia concessa, a impropriedade jurídica em ter-se a mera tolerância (“prazo de tolerância”) como se se tratasse de alteração ou prorrogação de prazo ou direito protestativo puro do devedor (construtora/incorporadora), traduzindo-se, ao revés, em benevolência/concordância antecipadamente concedida pelo credor (adquirente/consumidor), cujo uso (exercício) dá-se a partir da ocorrência de circunstância excepcional e pedido justificado, mas sem implicar aquisição ou renúncia a direito.
[1] De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico,14.ª ed., Rio de Janeiro, 1998, p. 820, destacamos.
[2] Adolfo Ravà. Tolleranza (Atti di), in Mariano D’Amelio (com colaboração de Antonio Azara). Nuovo Digesto Italiano, v. XII, p. 2.ª, Torino: UTET, 1940, p. 234, destacamos; v., ainda, Salvatore Patti. Profili della tolleranza nel diritto privato, CEDEJ: Napoli, 1978, pp. 45/48 e 51/59.
Fonte: CONJUR.