Introdução
O contrato, em sua clássica acepção, pode ser definido como o acordo de duas ou mais partes para estabelecer, regular ou extinguir uma relação jurídica patrimonial1. Além da função de criação de obrigações recíprocas entre as partes, o contrato também tem como função ser instrumento de alocação de riscos.
Assim, ao longo das tratativas, as partes, com fundamento no princípio da autonomia privada, definem as prestações recíprocas e, naturalmente, estabelecem os riscos a que estarão sujeitas. Como bem destacado por Massimo Bianca2, o contrato se enquadra na categoria mais ampla do ato de autonomia privada ou negócio jurídico, ou seja, da ação pela qual o sujeito tem sua própria esfera jurídica.
Como forma da permitir que o contrato alcance os seus objetivos, primordialmente, estabelecer as obrigações recíprocas das partes e, ainda, ser instrumento de alocação de riscos, diversos mecanismos foram criados pelo Direito Civil. Cite-se, por exemplo, a cláusula penal, a cláusula resolutiva expressa, as condições suspensiva e resolutiva, dentre outros institutos.
O objetivo do presente artigo é justamente realizar o estudo de mais um importante mecanismo para que o contrato atinja os objetivos citados acima: a cláusula de limitação ou exoneração de responsabilidade civil.
Quanto à terminologia da cláusula, Antônio Junqueira de Azevedo3 criticou o termo ‘cláusula de irresponsabilidade’. Segundo o autor, trata-se de expressão imprópria porque a liberação, contratualmente obtida, é da indenização, não havendo propriamente, admissão de irresponsabilidade. Fábio Henrique Peres4, em sentido próximo, prefere qualificá-la como ‘cláusula contratual de limitação e exclusão do dever de indenizar‘. Peres justifica sua opção a partir das lições de José de Aguiar Dias5, que afirmou:
Ninguém pode deixar de ser responsável, porque a responsabilidade corresponde, em ressonância automática, ao ato ou fato jurídico. Produzido este, a responsabilidade do agente a quem se liga será uma realidade. A cláusula não suprime a responsabilidade, porque não a pode eliminar, como não se elimina o eco. O que se afasta é a obrigação derivada da responsabilidade, isto é, a reparação.
Ocorre que diversas obras de referência na matéria, de autoria de renomados autores são intituladas como ‘cláusula limitativa e de exclusão da responsabilidade civil ou responsabilidade contratual’. Cite-se, a esse exemplo, o trabalho de António Pinto Monteiro6 e Ana Prata7.
A confusão pelo termo ‘cláusula de não indenizar’ é ainda maior porque, em alguns casos, o texto legal passa a ideia de que as partes poderiam excluir propriamente a responsabilidade e não apenas o dever de indenizar. Atentemo-nos, por exemplo, no caso da evicção. Tal como veremos à frente, o Código Civil (art. 448) expressamente permite que as partes possam “excluir a responsabilidade pela evicção”.
Mais do que isso. Como bem ressaltado por António Pinto Monteiro8, nada obsta que as partes firmem cláusula para restringir os fundamentos ou pressupostos da responsabilidade civil, acordando as partes, por exemplo, que o devedor só responderá no caso de ter agido com dolo ou culpa grave. Segundo Pinto Monteiro9:
Estipulada esta cláusula, o credor não poderá, pois, vir a exigir indemnização no caso de o devedor ter actuado com culpa leve. O que significa, afinal, que esta cláusula limitativa – porque limitativa dos fundamentos de responsabilidade, rectius, do grau de culpa do devedor – acaba por traduzir-se, na prática, numa cláusula de exclusão por culpa leve, exonerando o devedor sempre que o incumprimento não lhe seja imputável por dolo ou culpa grave.
Nesse caso, como se nota, as partes acabam por estipular cláusula que, aparentemente, poderia excluir a responsabilidade civil para a hipótese de culpa leve. Mas, na realidade, é o próprio Pinto Monteiro quem destaca o papel da cláusula e a impossibilidade do afastamento da responsabilidade civil. Pinto Monteiro destaca que a cláusula de limitação ou exoneração de responsabilidade não funciona como uma permissão ao credor inadimplir a obrigação. Não é isso. Segundo o autor10:
Na verdade, incorre-se num equívoco ao conferir a esta cláusula o efeito de permitir o não cumprimento da obrigação. Não é esta, contudo, a sua finalidade […]. Com a celebração do contrato, as partes vinculam-se, obrigam-se ao cumprimento dos deveres assumidos. Mas, ao mesmo tempo, ao acordarem na exclusão da responsabilidade, afastam a indenização que seria devida ao credor por um eventual não cumprimento (ou cumprimento defeituoso) [….] A função da cláusula de irresponsabilidade é apenas, numa palavra, de restringir ou limitar a sanção pelo não cumprimento (latu sensu) das obrigações emergentes do contrato, ao nível da respectiva indemnização, sem interferir, porém, com a exigibilidade dessas obrigações, que continua a justificar-se pelos facto de as partes, ao celebrar o negócio, pretenderem que os efeitos práticos sejam juridicamente vinculativos.
Pois bem. Como importante instrumento na regulação dos interesses das partes e a considerar que a cláusula de limitação ou exclusão da responsabilidade civil é utilizada com certa frequência no âmbito dos contratos, o presente estudo se faz necessário.
Como bem destacado por Arnoldo Wald11, tal cláusula se faz presente em instrumentos de cooperação bilateral, e é atualmente muito utilizada em contratos de engenharia e construção, em razão dos riscos envolvidos e em decorrência da perspectiva de pagamento de vultosas indenizações, cláusula essa cuja inexistência poderia inviabilizar os negócios.
Destacamos, ao final, que o presente artigo tem por objetivo tratar da aplicação da cláusula de limitação e exclusão na responsabilidade civil contratual e não extracontratual12.
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1 BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: Il Contratto. 3. ed. v. III. Milano: Giuffrè Francis Lefebvre, 2019. p. 1. Texto original: “il contratto è l’accordo di due o piu parti per constituire, regolare o estinguire tra loro un rapporto giuricico patrimoniale”.
2 BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile: Il Contratto. 3. ed. v. III. Milano: Giuffrè Francis Lefebvre, 2019. p. 2. Texto original: “il contratto rientra nella più ampia categoria dell’atto di autonomia privata o negozio giuridico, cioé dell’atto mediante il qualse il soggetto dispone della propria sfera giuridica”.
3 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Cláusula cruzada de não indenizar (cross-waiver of liability), ou cláusula de não indenizar com eficácia para ambos os contratantes. In: ______. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 201.
4 PERES, Fábio Henrique. Cláusulas contratuais excludente e limitativas do dever de indenizar. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 55
5 AGUIAR DIAS, José de. Cláusula de não indenizar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 38.
6 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011.
7 PRATA, Ana. Cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual. Reimpr. Coimbra: Almedina, 2005.
8 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 106.
9 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 106-107.
10 MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 186-189. Aparentemente essa é a mesma posição de Ana Prata. Segundo a autora “a cláusula não se inscreve no quadro dos pressupostos da responsabilidade, afastando qualquer deles, mas, ao invés, implica a sua verificação cumulativa e a consequente qualificação do devedor como responsável. Esta qualificação corresponde a uma valoração do comportamento que reúne os requisitos da imputação ao devedor das consequências danosas do mesmo. O resultado de tal qualificação é a adstrição do devedor a uma obrigação, cujo objeto é, então, o de eliminar no patrimônio do credor os efeitos patrimoniais daquela conduta ilícita e culposa. É esta consequência que constitui o objeto da cláusula exoneratória ou limitatória” (PRATA, Ana. Cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual. Reimpr. Coimbra: Almedina, 2005. p. 205).
11 WALD, Arnoldo. A cláusula de limitação de responsabilidade no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. N. 2. v. 4. p. 138. São Paulo: RT, jul.-set. 2015.
12 Segundo parte da doutrina, nada obsta que as partes possam também estabelecer cláusula de limitação ou exoneração na responsabilidade civil extracontratual. Na realidade, como bem ressaltado por António Pinto Monteiro, inicialmente, pode ser difícil imaginar a aplicação da cláusula de exclusão ou limitação da responsabilidade civil extracontratual porque “como é que alguém poderá antecipadamente excluir a sua responsabilidade perante pessoas que – precisamente por não estarem ligadas entre si – se apresentam como terceiros”. MONTEIRO, António Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2011. p. 392. Embora seja reconhecida tal dificuldade, Fábio Henrique Peres cita exemplo de situação em que a cláusula poderia ser aplicada “imagine-se a hipótese de duas ou mais fábricas, localizadas em regiões contíguas, que utilizam máquinas pesadas na sua atividade produtiva, causando barulhos e abalos consideráveis nos terrenos vizinhos. Nesse caso, entendemos que se faculta às aludidas indústrias pactuarem expressamente a limitação ou a exoneração do dever de indenizar com relação a eventuais danos decorrentes dos ruídos e tremores provocados por tais equipamentos, sendo despiciendo afirmar que o alcance de tal convenção estaria constrito às partes contratantes, não prejudicando quaisquer direitos de terceiros, inclusive no que se refere a questões ambientais ou de ordem pública”. (PERES, Fábio Henrique. Cláusulas contratuais excludente e limitativas do dever de indenizar. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 121-122). No mesmo sentido, José de Aguiar Dias, também cita outro exemplo: “compreende-se por igual que armadores, cujos navios sigam rota idêntica, concordem em não reclamar reciprocamente reparação pelos danos derivados de abalroação aos respectivos navios”. (AGUIAR DIAS, José de. Cláusula de não indenizar. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 242).
Fonte: Migalhas