Por Álvaro Vilaça Azevedo
Ao art. 3.º da Lei 8009, de 1990, foi acrescentado o inc. VII, pelo art. 82, da Lei 8.245, de 18.10.1991, que regula a locação de imóveis urbanos, com a seguinte redação: “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”, não há exceção de impenhorabilidade.
Tal exceção, como posta, poderia parecer verdadeira incongruência; pois, tendo o inquilino como impenhoráveis os bens que guarnecem sua residência, poderia seu fiador sofrer execução de seu bem de família, sua residência.
Assistimos, nesse caso, a execução do patrimônio do fiador, sem possibilidade de exercer o benefício de ordem; a execução do acessório sem a possibilidade de executar-se o principal.
Acresce, ainda, que tal preceito leva a que seja executado o responsável (fiador), sem a possibilidade de execução do devedor (o locatário, afiançado); e, mais, que sendo executado o primeiro, não possa ele exercer seu direito de regresso contra o segundo.
Escudado nesse entendimento o então Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, por sua 4ª Câmara, sendo Relator o, em 2002, Juiz Neves Amorim, decidiu pela possibilidade de penhora do imóvel residencial do fiador, em razão de fiança em contrato locatício.
Tudo parece incrível ante o instituto da fiança, como garantia fidejussória, de natureza pessoal, sem vincular bem específico do fiador. Nesse caso, realmente, não poderia existir penhora, a não ser em bem disponível; jamais sobre bem de família.
Todavia, a fiança locatícia apresenta natureza jurídica diversa, pois estabelece a vinculação de um bem específico, oferecido em garantia. Esse bem fica gravado, por um contrato real de penhor ou de verdadeira hipoteca, pois o art. 38 da Lei do Inquilinato, n. 8.245, de 18.10.1991, exige, em seu § 1.º, que: “A caução em bens móveis deverá ser registrada em Cartório de Títulos e Documentos; a em bens imóveis deverá ser averbada à margem da respectiva matrícula”.
Com todas essas providências registrais, como visto, não se cuida de mera garantia fidejussória, que vincula, mais, a pessoa do garantidor. Trata-se de direito real sobre coisa alheia. O locador tem direito de executar o bem específico dado em penhor.
Assim, como existe um contrato em que o bem do fiador se torna penhorado ou hipotecado, quer se trate, respectivamente, de bem móvel ou imóvel, dado em garantia, esse ato jurídico perfeito, cuja validade se estende a terceiros, é erga omnes; não há que falar-se em sua desconstituição por ser bem de família.
Aliás, tal exceção existe, também, no caso do oferecimento do imóvel, em hipoteca, pelo próprio casal ou entidade familiar, como previsto no já analisado inc. V do art. 3.º sob exame. Nesse caso, entretanto, cuida-se do instituto da hipoteca, como vem regulado pelo Código Civil, com todas as formalidades ali exigidas.
No caso específico do inciso VII sob análise, o legislador concedeu benefício equivalente ao do direito real de hipoteca, quando o imóvel é dado em garantia da locação; cuida da matéria como se fiança fosse (garantia fidejussória), autoriza registros, para valer contra terceiros, por indicação do bem imóvel pelos fiadores, em garantia de locação desde que realizada a caução prevista no § 1º, do art. 38 da Lei do Inquilinato (8.245, de 18.10.1991).
Mesmo acontece com a fiança mobiliária ofertada, que se transmuda em verdadeiro penhor, quando realizada a caução mencionada no atrás citado § 1º.
Desse modo, não seria lógico e nem jurídico que, por força de contrato real de penhor ou de hipoteca, o bem objeto dessa contratação pudesse ser libertado do ônus, por lei, em quebra do direito adquirido do contratante credor da garantia, e do ato jurídico perfeito.
Todavia, como visto, não basta que a aludida fiança se mostre somente fidejussória; é preciso que adquira natureza de direito real sobre o bem dado em garantia.
Daí, a necessidade de registro do ato de garantia, nos apontados Cartório de Títulos e Documentos ou Registro Imobiliário, conforme seja móvel ou imóvel o objeto onerado.
Também seria procedimento de alta má fé que o proprietário de um bem o conferisse em garantia de uma relação jurídica, para não cumprir o avençado ou já sabendo da impossibilidade de fazê-lo. O direito não pode suportar procedimento de má fé, ou de quem alegue nulidade a que tenha dado causa.
Quem viola a norma não pode invocá-la em seu benefício (Nemo auditur turpitudinem suam allegans).
Enfrentando essa matéria, decidiu a 8.ª Câmara do 2.º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, por votação unânime, em 05.11.1992, sendo Relator o Juiz Milton Gordo (RT 694/147), que: “A ação de execução movida contra o fiador foi ajuizada sob o império da Lei 8.245/91, que acrescentou exceção à impenhorabilidade do bem de família instituída pela Lei 8.009/90, ‘por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação’, o que tornou o bem em questão penhorável. Assim, não se vê, por isso, razão para se negar a penhora cogitada desde que sobre o imóvel não pesa mais a restrição que antes incidia”. Inumeráveis outros julgados ratificam o preceituado nesse inciso VII, sob exame.
É bem verdade que, à época, não se cogitava do direito de moradia que veio a integrar o caput do art. 6º da Constituição Federal após a Emenda Constitucional nº 26, de 14.02.2000, causando polêmica ante o confronto desse direito social com a penhorabilidade do bem de família do fiador em matéria de contrato de locação.
Todavia, sempre mantive meu ponto de vista, como adiante demonstro, de que, no caso, não se aplica esse direito social de moradia à situação do bem de família.
Direito à moradia
A moradia está assegurada pela Constituição no caput de seu art. 6º, como um direito social do cidadão, entre outros, com a redação dada pela EC nº 26, de 14.02.2000.
Todo cidadão, em princípio, tem o direito subjetivo público de pedir ao Estado um mínimo ético (minimum eticum) para existir, ensina Georg Jellinek . É o direito à vida, que precede todos os demais. Existindo o ser humano, tem sua dignidade de viver da melhor maneira possível, sob um teto.
O Estado deve, assim, desenvolver projetos de construção de habitações populares, que possam ser adquiridas pelos cidadãos de baixa renda.
Acontece que o direito à moradia vai muito além do direito de propriedade, pois só pequena parcela da população é proprietária de imóveis como também não tem condição financeira para adquiri-los. A grande maioria dos cidadãos vive em imóveis alugados, quando tem o privilégio de poder pagar aluguel. Grande contingente populacional vive em favelas.
A esses não proprietários é que, em geral, destina-se a proteção do direito à moradia, que deve ser sanado pelo Estado, à medida do possível, assegurando esse direito com o tempo.
Quem tem propriedade imóvel já está, em princípio, assegurado, podendo negociar, nos moldes que entender.
Muito se tem discutido sobre alegada inconstitucionalidade do inciso VII, do art. 3º, da Lei 8.009, de 1990, nela inserido pela Lei 8.245, de 1991, que admite a penhora de bem de família em caso de fiança em contrato locatício. Discutiu-se que poderia prevalecer, nesse caso, o citado direito à moradia; entretanto, como visto, uma coisa é o direito à moradia, outra o bem de família. O primeiro está nas relações do cidadão com o Estado, na área do Direito Público; o segundo nas relações dos cidadãos, entre si, no âmbito do Direito Privado.
Decidiu, então, em 08 de fevereiro de 2006, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, sendo Relator o Ministro Cezar Peluso (Re 407.688-8-SP, publ. no DJ de 6.10.2006) pela legitimidade da penhora do bem de família do fiador, sem afronta ao direito de moradia.
Nesse caso, salienta, em seu voto, acompanhando o do Relator, o Ministro Joaquim Barbosa que se confrontam dois direitos fundamentais: de um lado o direito de moradia, “que é direito social constitucionalmente assegurado e, em princípio, exige uma prestação do Estado; de outro, o direito à liberdade, em sua mais pura expressão, ou seja, o da autonomia da vontade, exteriorizada, no caso concreto, na faculdade que tem cada um de obrigar-se contratualmente e, por consequência, de suportar os ônus dessa livre manifestação de vontade”.
São, no meu entender, como visto, duas relações jurídicas distintas: em uma, o direito do cidadão junto ao Estado, de pedir condições de moradia; em outra, o relacionamento de contratantes, de natureza estritamente privada.
Por isso, o exercício da liberdade contratual, prevista na relação de direito privado em nada se incompatibiliza com o direito social do cidadão, referente à moradia, que se mostra na relação de direito público subjetivo dele junto ao Estado.
Destaque-se, mais, em favor da tese da penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato locatício, sem violação do direito social de moradia, previsto na Constituição, o julgado do Supremo Tribunal Federal, da 1ª Turma, sendo Relator o Ministro Sepúlveda Pertence (e inúmeros outros casos).
Seguindo a mesma tese, outro acórdão, da 6ª Turma, do Superior Tribunal de Justiça, sendo Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura que se baseia e outros julgados, enfatizando a constitucionalidade do inciso VII, do art. 3º, da Lei 8.009, de 1990, e art. 82 da Lei 8.245, de 1991.
Há inúmeros outros julgados com o mesmo entendimento.
Ressalte-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu essa tese da penhorabilidade do bem de família do fiador, como se nota de vários julgados citados.
Consolidou-se, assim, nesse posicionamento, a Jurisprudência.
Analisando, a bem da pesquisa, a Jurisprudência, em sentido contrário, reconhecia a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação.
Há algumas decisões, nesse sentido.
Registre-se, nessa oportunidade, que em 08 de outubro de 2003, o Superior Tribunal de Justiça decidiu por sua Segunda Seção e por maioria de votos, sendo Relatora a Ministra Nancy Andrighi (REsp 526.460-RS), que “Não renuncia à impenhorabilidade prevista na Lei nº8009/90 o devedor que oferta em penhora o bem de família que possui. Se a proteção do bem visa atender à família, e não apenas ao devedor, deve-se concluir que este não poderá, por ato processual individual e isolado, renunciar à proteção, outorgada por lei em norma de ordem pública, a toda a entidade familiar”.
Essa decisão contrariou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sentido contrário.
Também, reconhecendo essa impenhorabilidade do bem de família do fiador em locação, é o acórdão do Supremo Tribunal Federal relatado pelo Ministro Carlos Velloso (RE 352.940-4), de 25.04.2005. No mesmo sentido, julgou o Superior Tribunal de Justiça.
Fonte: Carta Forense