A alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, instituída pela Lei 9.514/97, foi importante instrumento para estímulo ao crédito imobiliário e, por consequência, ao reaquecimento deste mercado, sobretudo após a edição da Lei 10.931/2004.
Ocorre, no entanto, que, apesar dos quase 13 anos de vigência da lei em questão, várias discussões ainda permeiam o tema, sendo uma das principais a forma de sua instrumentalização. Isto por que a Lei 9.514/97 permite que a constituição de tal garantia seja feita por instrumento particular, como exceção à regra da escritura pública prevista no artigo 108 do Código Civil, nos termos do artigo 38 abaixo transcrito:
Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.
Com efeito, apesar da abrangência nacional da legislação federal, a corregedoria de alguns estados vem entendendo que a regra da utilização do instrumento particular para a formalização da alienação fiduciária em garantia e dos negócios a ela conexos (como no caso da compra e venda) apenas se aplica às instituições do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), embora não tenha a lei feito qualquer restrição quanto a isso.
Neste sentido é o que disciplina o Código de Normas dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Pará, Bahia e Paraíba.
Em que pese a sua utilização fora do mercado financeiro apenas ter ganhado corpo nos últimos anos, trata-se de instrumento disponível a todo tipo de operação, inclusive por pessoa física, “não sendo privativa das entidades que operam no SFI”, conforme expressamente disciplina o parágrafo primeiro do artigo 22 da lei em referência, entendimento que é corroborado pelo artigo 51 da Lei 10.931/2004.
Destaque-se que, em que pese o SFI ser regulado também pela Lei 9.514/97, tal como a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, tais institutos são tratados em capítulos distintos, não havendo razão para ser criada qualquer relação de dependência quanto às regras de um ou do outro. Na verdade, se o legislador quisesse criar algum tipo de limitação à utilização do instrumento particular, teria incluído no final do texto do artigo 38 acima transcrito expressão neste sentido, para diferenciar as hipóteses que deveriam ser utilizadas, o que não o fez.
Sobre a ausência de restrição ou condicionante para a utilização do instrumento particular, cumpre transcrever o que diz o jurista e autor do anteprojeto da Lei que deu origem à alienação fiduciária em garantia (9.514/97), Melhim Namem Chalub:
“Os atos e contratos referidos na Lei 9.514/97, bem como aqueles resultantes da sua aplicação, poderão ser formalizados por instrumento particular. A lei não faz restrição alguma quanto às modalidades de contrato passíveis de ser formalizados mediante instrumento particular em relação à Lei 9.514/97; ao contrário, estende a possibilidade de formalizar por instrumento particular a todos os atos e contratos referidos nesta lei ou resultantes de sua aplicação.’ Assim, quando resultantes da referida lei, podem ser celebrados por instrumento particular a compra e venda, a promessa de venda, a hipoteca, a caução de direitos aquisitivos, a cessão fiduciária, a alienação fiduciária, enfim, os atos e contratos relacionados à comercialização de imóveis e à constituição de garantias imobiliárias previstas na Lei nº 9.514/97 ou resultantes dela.”1 – grifos acrescidos
No mesmo sentido assim já decidiu a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo ao apreciar caso em que se questionava a instrumentalização de tal tipo de garantia por instrumento particular em operação fora do SFI, a saber:
“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEL — Possibilidade de o contrato ser firmado por pessoa jurídica que não integre o SFI – Contrato que pode validamente revestir formas pública ou particular Arts. 22 e 38 das NSCGJ Precedente Recurso Desprovido.” (Processo administrativo: 0049648-26.2012.8.26.0002 – CGC/SP 11.07.2016)
Sendo assim, não se faz necessário grande exercício hermenêutico para se concluir que não há qualquer restrição ou condição para a utilização do instrumento particular para possibilitar constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis quando compreendido no instrumento a alienação fiduciária em garantia.
Observe-se, ainda, que as normas da corregedoria, com caráter infralegal, não podem criar uma restrição não prevista em lei, que pode representar obstáculo ao exercício do direito por parte dos usuários dos serviços registrais, em grave afronta ao princípio da legalidade (artigo 5º, II – CF/88).
Não bastasse isso, ainda que eventualmente a restrição em questão tivesse sido instituída por Lei do respectivo estado, ainda assim, esta padeceria de inconstitucionalidade, tendo em vista a competência privativa da União para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos (artigo 22, I e XXV – CF/88), conforme, inclusive, já decidiu o STF em julgamento do plenário ocorrido no último 13 de setembro (ADI 5.663).
Destaque-se, por fim, que no julgamento do Procedimento Controle Administrativo CNJ 0000145-56.2018.2.00.0000, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), iniciado no dia 14/03/2019, o relator do referido procedimento, Conselheiro Fernando César Baptista de Matos, proferiu voto no sentido de declarar inválido o provimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que restringiu o uso do instrumento particular nos contratos de alienação fiduciária em garantia de imóveis às entidades integrantes do SFI, estendendo-se, ainda, os efeitos da referida decisão ao TJ-PA, TJ-PB e TJ-BA, conforme parte dispositiva do voto, abaixo transcrita:
“Ante o exposto, voto pela procedência parcial dos pedidos para declarar inválida a parte do Provimento TJ-MG 345/2017 que restringe a celebração dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos, por meio de instrumento particular, às entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) ou às Cooperativas de Crédito, estendendo, ainda, os efeitos da presente decisão, no que couber, aos TJ-PA, TJ-PB e TJ-BA.”
Tal entendimento foi acompanhado pelos conselheiros Aloysio Corrêa da Veiga, Valtércio de Oliveira e Arnaldo Hossepian, tendo, em seguida, o julgamento sido suspenso, sem que, até então, houvesse qualquer voto em sentido contrário, o que evidencia todos os argumentos já acima expostos.
Diante do exposto, resta evidente a inconstitucionalidade e ilegalidade das normas da corregedoria de alguns estados que criam restrições não trazidas pela Lei 9.514/97, violando, desta forma, a competência da União para tratar sobre Direito Civil e Registros Públicos, o que, por consequência, gera insegurança jurídica ao mercado, sobretudo por não admitir o registro milhares de contratos já firmados com base no que estabelece a legislação em questão.
1 CHALHUB, Melhim Namem. “Negócio Fiduciário”, Ed. Renovar, Rio de Janeiro – São Paulo – Recife, 2009, p. 234-235.
Fonte: CONJUR