Por Fabio Rocha Pinto e Silva
A alienação fiduciária está na UTI. Vozes preocupadas alertam contra a sua “excessiva judicialização” e reforçam a importância de manter viva essa garantia. Em socorro, o Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, acenou positivamente aos anseios do mercado, em evento realizado no dia 7 de fevereiro, em Brasília.
Há boa razão – do mercado e do governo – para se preocuparem com a derrocada da alienação fiduciária. Esta tem sido a garantia mais forte utilizada pelos credores em financiamentos no Brasil e foi responsável, em especial no mercado imobiliário, por uma ampliação expressiva do crédito. Há enorme prejuízo, portanto, se essa ferramenta cair em descrédito.
O Brasil está em um período de grandes reformas, o que permite pensar em mudanças positivas ao mercado de crédito. Uma reforma ampla, que tenha por objeto também as garantias, tornou-se urgente, como já afirmamos, em vista do diagnóstico feito pelo Banco Mundial.
No curto prazo, é necessário garantir o bom funcionamento da alienação fiduciária. Um projeto apresentado pela ABECIP – Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança pretende corrigir algumas falhas históricas da modalidade imobiliária, prevista na Lei nº 9.514/1997: (i) restringir o fantasma da “quitação recíproca” apenas às operações de crédito realizadas no âmbito do SFH e do SFI; (ii) estabelecer nova regra para o valor mínimo de venda forçada do bem, evitando-se litígios; (iii) delimitar temporalmente o direito do devedor de purgar a mora, em que lhe seria facultado fazer convalescer a garantia e o financiamento; (iv) regular melhor as regras de notificação do devedor, em especial quando houver ocultação proposital; (v) por fim, determinar que controvérsias que perdurem após a consolidação da propriedade sejam resolvidas em perdas e danos, como manda a boa prática.
Há grande consenso no mercado quanto a essas alterações, muitas discutidas há vinte anos. Mas trata-se de uma reforma paliativa. Não há, nessa iniciativa, qualquer ganho à posição brasileira no ranking de crédito do Banco Mundial. Isso porque uma reforma pontual é incapaz de alcançar os elementos estruturais do sistema recomendados pelo Banco e pelos instrumentos internacionais mais recentes.
Pudemos discutir esses temas em um evento realizado recentemente pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras – CNF, também em Brasília, no dia 26 de janeiro, em que recebemos dois importantes convidados internacionais: Spyridon Bazinas, secretário do Grupo VI da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional – UNCITRAL, responsável por uma novíssima lei-modelo em matéria de garantias, aprovada em Nova York em 2016; e a professora Teresa de las Heras Ballel, membro do grupo de especialistas que discute atualmente o chamado Protocolo MAC, na UNIDROIT, em Roma.
Há uma conclusão relevante nos foros internacionais, que deve ser considerada no cenário brasileiro. Dois gêneros de problemas atingem a propriedade fiduciária, além de outras formas da chamada propriedade-garantia: um diz respeito à regulamentação; o outro diz respeito à natureza jurídica.
Em relação ao primeiro, temos instrumentos de crédito submetidos a uma regulamentação casuística, muitas vezes insuficiente. As mudanças propostas pela ABECIP à Lei nº 9.514/1997 comprovam essa tese. No entanto, outras falhas permanecem.
Por exemplo, o artigo 51 da Lei nº 10.931/2004 permitiu expressamente a utilização da alienação fiduciária para garantir dívidas futuras e não pecuniárias, mas o artigo 24 da Lei nº 9.514/1997 exige que seja expresso no contrato o valor da dívida. Não existe para a alienação fiduciária de imóvel a previsão análoga contida no artigo 1.424 do Código Civil, que permite ser expresso um valor máximo, ou mesmo um valor estimado da dívida, quando as partes não conhecem ainda o valor líquido e certo. Daí pergunta-se: qual a necessidade de a Lei nº 9.514/1997 dispor sobre os requisitos do contrato de garantia, quando os mesmos requisitos já existem, inclusive com melhor redação, no Código Civil?
A solução para esse problema é o que a doutrina internacional chama de “abordagem unitária” das garantias: não há a necessidade de a lei repetir as mesmas matérias para cada modalidade de garantia; basta que a lei determine, de maneira genérica, os requisitos e os regimes de todo contrato de garantia, evitando-se inconsistências e lacunas.
Um segundo problema, entretanto, é mais grave. A propriedade fiduciária surge como uma garantia à aquisição de bens, para dotar os credores de uma garantia exclusiva sobre o bem financiado, de modo que nenhum outro credor (nem mesmo o fisco ou os credores trabalhistas) pudesse tomar para si o bem, enquanto o financiamento original não fosse pago. Há perfeita lógica no raciocínio, mas, para fazê-lo, não é necessário recorrer ao conceito de “propriedade”.
A fuga dos credores em direção à propriedade de bens é bem documentada internacionalmente, assim como os riscos que passam a ser enfrentados pelos mesmos credores.
De início, a ideia de propriedade-fiduciária impede que o bem seja dado em garantia em segundo grau, ainda que o valor do bem seja muito superior ao valor da dívida, gerando enorme desperdício de crédito. Para este problema, aventa-se a possibilidade de uma garantia sobre o “direito expectativo”, algo cogitado na Alemanha, embora distante da realidade prática dos financiamentos. Não consta que essa alternativa tenha tido grande sucesso no Brasil.
Outras questões dizem respeito à própria formação da garantia, por “transmissão da propriedade”. Qual a lógica de ser devido ITBI sobre uma garantia real, ainda que o tributo seja diferido ao momento de consolidação da propriedade? Note-se que não há ITBI na execução hipotecária, exceto aquele devido pelo eventual adquirente. No mais, o que dizer da exigência de georreferenciamento para a alienação fiduciária de imóveis rurais ou, pior, a ideia corrente de ser vedada essa garantia em favor de credores estrangeiros, fundada em restrições legais aplicáveis à efetiva aquisição?
Por fim, há o risco de responsabilização por tributos decorrentes do bem dado em garantia, ou por obrigações propter rem, como temos visto em decisões do STJ contra os credores; e também o risco hipotético – e nefasto – de responsabilidade civil, especialmente de origem ambiental. O receio da responsabilização do credor levou a alterações recentes no artigo 1.367 e na inclusão do artigo 1.368-B do Código Civil. O primeiro levanta um ponto de alerta sobre a natureza jurídica dessa garantia que, na nova redação legal, não se equipara “para quaisquer efeitos, à propriedade plena”. Com isso, concluiu-se que a “propriedade fiduciária” não é propriedade, pois na realidade é uma… garantia!
O professor francês Charles Gijsbers escreveu no início da década uma tese premiada em que defende essa posição – ele veio ao Brasil nesta semana e pretendemos entrevistá-lo para o JOTA: haveria na ideia de propriedade-garantia uma “hipocrisia legislativa” de um legislador envergonhado. O legislador pretendia que o financiador recebesse em primeiro lugar sobre o produto da garantia. É o lógico. Mas, para dissimular os efeitos dessa política sobre a ordem legal de preferências, preferiu dizer que apenas os credores garantidos pela propriedade – não todos, portanto – receberiam primeiro.
Só que quando ambas as opções estão no cardápio, a escolha é óbvia. Hoje, no Brasil, a alienação fiduciária tornou-se a regra geral, ou seja, o financiador recebe (quase) sempre em primeiro lugar. Não é difícil enxergar a hipocrisia presente nesse cenário legislativo, o que tem motivado o Judiciário a decidir por vezes contra o uso da alienação fiduciária e, quase sempre, contra a lei. No mais recente ataque contra essa garantia, uma sentença de 7 de fevereiro, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Capital de São Paulo (Processo nº 0015946-47.2016.8.26.0100), decidiu que a modalidade de alienação fiduciária prevista no artigo 66-B da Lei nº 4.728/1964 não pode ser utilizada em favor de credor estrangeiro. A insegurança jurídica resultante de decisões judiciais recorrentes e erráticas é um seríssimo problema, que nenhuma reforma da alienação fiduciária será capaz de solucionar em definitivo.
Uma reportagem de 19 de janeiro, do Valor Econômico, afirma que haveria na atual reforma da Lei de Falências (Lei nº 11.101/2005) a proposta de sujeitar a alienação fiduciária à Recuperação Judicial, assegurando, por outro lado, uma posição prioritária a esses credores. Parece haver a intenção de implantar no sistema insolvencial brasileiro uma solução altamente recomendada pelo Banco Mundial e pela UNCITRAL: a chamada “abordagem funcional”. Para evitar o que se chamou na doutrina de “arbitragem regulatória”, bastaria que a reforma da Lei de Falências reconhecesse que toda garantia real é uma… garantia real! Com isso, os credores com hipoteca, penhor e propriedade fiduciária passariam a receber o mesmíssimo tratamento na recuperação judicial e na falência. Fim da incoerência, fim da hipocrisia legislativa.
Quando mencionamos essa possibilidade no evento promovido pela CNF, com o respaldo do representante da ONU, logo um participante perguntou: – “mas vão nivelar por cima ou por baixo”?
A pergunta é justa, mas a resposta, a bem da verdade, já existe no nosso sistema, desde que adotamos a propriedade fiduciária. É plenamente lógico que um credor garantido pelo bem receba em primeiro lugar, desde que não tenha recebido sua garantia em fraude ou quando já insolvente o garantidor. Ademais, é plenamente lógico que o credor que financiar a aquisição do bem receba, sobre o bem adquirido, uma garantia em primeiríssimo lugar. É o que a UNCITRAL chama de garantia de aquisição, e a legislação norte-americana chama de purchase money security interest. Em qualquer caso, torna-se inútil recorrer à ideia de propriedade-garantia, pois a lei passa a assegurar a prioridade do credor de forma genérica, qualquer que seja a modalidade de garantia real recebida.
A abordagem funcional é um passo essencial para reformar as garantias de maneira abrangente, e por isso é a recomendação número um do Banco Mundial, no relatório Doing Business. Sem a necessidade de diferenciar os efeitos do penhor, da hipoteca e da propriedade fiduciária, é possível simplificar enormemente a legislação, equiparar os regimes, os requisitos de formação e de eficácia, e também as modalidades de excussão dessas garantias. No Brasil, poderíamos abandonar a polêmica sobre o Decreto-Lei nº 70/1966, além de generalizar a modalidade de excussão extrajudicial da Lei nº 9.514/1997 e a retomada célere do bem prevista no Decreto-Lei nº 911/1969, para todos os credores, sem distinção.
Poderíamos ainda, como fizeram legislações estrangeiras, criar uma única norma geral de excussão para toda garantia real, permitindo ao credor optar pela execução judicial, pelo procedimento mais célere perante o serviço de registro do bem, ou mesmo por modalidades diretas de excussão, como a venda direta com cláusula-mandato e a apropriação direta – chamada de “pacto marciano”, que se diferencia do “pacto comissório” por permanecer o credor obrigado a devolver o excesso de valor do bem em garantia.
Ao que parece, todas as condições para avançarmos nesse sentido estão reunidas. Com coragem legislativa e a contribuição de todos os envolvidos, podemos alcançar um resultado até há pouco tempo inimaginável: dotar o Brasil de um sistema simples, coerente e eficaz de garantias, com benefícios imediatos ao crédito. Por todas essas razões, é sim importante apoiar as iniciativas de melhoria da alienação fiduciária, mas, principalmente, é imperativo avaliarmos como as reformas atualmente discutidas podem contribuir para avanços e resultados mais expressivos no futuro.
Fonte: JOTA