Por Sabrina Berardocco Carbone
A opção legislativa em incluir o contrato built to suit à lei de locações se adequa à realidade desse modelo de negócio imobiliário? Seria ele um contrato típico, atípico ou misto?
Tais questões afligem os profissionais do ramo imobiliário e serão alvo de inúmeras demandas no Poder Judiciário, dado o feixe complexo de relações jurídicas que esse contrato encerra.
Nesse tipo de modelo de negócio, as partes, atendendo as características da contratação, os interesses envolvidos, o grau de investimento e o comprometimento das mesmas, pactuam livremente suas cláusulas, as quais têm que estar alinhadas com a função social do contrato, equilíbrio e função econômica da contratação.
O contrato built to suit contempla, portanto, várias modalidades contratuais (compra e venda, empreitada, prestação de serviços, administração, locação) e, por esta razão há de se indagar se a classificação de contrato típico ou atípico a ele se ajusta, apesar do deputado Carlos Bezerra apontar na justificativa de seu PL 6.562/09, a atipicidade de tal contrato. Seria o contrato built to suit atípico e misto?
Em linhas gerais, o contrato típico é aquele previsto em lei e o contrato atípico, aquele não previsto em lei e que se submete às regras gerais aplicáveis aos contratos. Nesse ponto, o fato da lei de locação incluir esse modelo de negócio em seu texto, eleva o contrato built to suit à categoria de contrato típico? A locação é o fator determinante desse contrato ou seria ela secundária do ponto de vista da causa da contratação?
Atento à tendência de incluir esse contrato na lei de locação, o deputado Carlos Bezerra fez constar com muita propriedade em sua justificação que o objetivo do projeto era proporcionar maior segurança jurídica sem impedir o dinamismo e evolução desse modelo de negócio imobiliário, decidindo, por isso, manter o caráter atípico, restringindo-nos a estabelecer que os dispositivos da lei de locação não terão incidência, salvo se as partes dispuserem em sentido contrário.
Entretanto, denota-se que houve uma opção legislativa em incluir tal contrato na lei de locação, relegando aos profissionais do Direito a árdua tarefa de adequá-lo à realidade fática de cada caso concreto, de modo a não mitigar os interesses das partes e as funções social e econômica do contrato diante das restrições existentes na lei 8.245/91.
A expressão built to suit significa “construído para servir”, ou seja, a primeira ideia que nos vem à cabeça é o da construção ajustada e não da locação.
A construção ajustada é para servir às necessidades do contratante e reverte-se de caráter primordial na contratação, afigurando-se a locação um fator secundário, daí, a crítica que se faz pela inclusão deste modelo contratual na lei de locação.
Disto, podemos extrair os elementos caracterizadores do contrato built to suit e perquirir se as relações jurídicas que nele se inserem estão ou não tipificadas na lei de forma a configurar não um contrato atípico, mas um contrato misto, criado a partir de elementos típicos que o caracterizam. Para tanto, analisaremos um pouco mais o conteúdo da lei 12.744/12, em especial o artigo 3º que acrescentou o artigo 54-A à lei 8.245/91, vejamos:
Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o (1) locador procede à prévia aquisição, (2) construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este (3) locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta lei.
Fazendo uma análise crítica do texto de lei incorporado à lei de locação, denota-se que a locação prevaleceu como opção legislativa e aparece como causa principal da contratação, preferindo o legislador denominar as partes, desde o início do contrato, pelas figuras tipificadas de “locador” e “locatário”, muito embora, a primeira parte da contratação não se insira no tipo legal da locação, o que refletirá, à época da renovação do contrato, via judicial ou extrajudicialmente.
Observação feita, retomemos a análise dos elementos trazidos pela lei 12.744/12 com a identificação dos contratos nominados. Vejamos:
1. Locador procede à prévia aquisição: ou seja, o locador adquire um imóvel no mercado para atender as necessidades de outrem, sendo certo que a compra e venda é o clássico exemplo de contrato nominado e é considerado um dos contratos mais frequentes e de maior importância social como instrumento da circulação dos bens, conforme palavras de Orlando Gomes.
Para o locatário (utilizaremos aqui a denominação dada pela lei, apesar de com ela não concordar), a aquisição do terreno pelo locador é extremamente vantajosa, pois não disponibilizará capital para a compra de um imóvel, nem tão pouco incorporará um bem ao seu ativo imobilizado. Para o locador, à primeira vista, a aquisição de um terreno específico para atender às necessidades de outrem pode se revelar como um ônus excessivo, na medida em que, extinta a relação jurídica formada, seja pela resolução do contrato, seja pelo seu término, ficará o locador com um bem imóvel destinado a uma atividade específica e, portanto, esse aspecto deverá ser considerado quando da fixação da remuneração (que a lei chama de aluguel).
2) Construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros
Empreitada: o empreendedor adquire o terreno e nele erige uma construção conforme e nos moldes das necessidades e exigências do ocupante.
Prestação de serviços e administração: no contrato de empreitada pode estar inclusa a prestação de serviços, como por exemplo, a elaboração de projetos de engenharia civil, contratação de mão-de-obra, compra de materiais, etc., bem como a administração da própria obra.
A construção ou reforma para atender as necessidades do locatário, a nosso ver, é um ponto crucial do contrato, já que, poderá ele recusar o recebimento da obra, alegando que não está a contento? E os investimentos do locador como serão ressarcidos pelo futuro locatário?
Aponte-se que o STJ já se deparou com esta problemática em julgamento realizado em 15/4/08, tendo a ministra Nancy Andrighi, julgado demanda indenizatória em contrato do tipo built to suit, com análise da culpa caracterizada pela má execução da obra. Mencionado julgado é uma das referências deste contrato no direito brasileiro (REsp 885910-SP, 3ª turma, j. 15.04.2008, registro 2006/0144180)
(3) Locado por prazo determinado
Locação: a locação propriamente dita só se inicia se a obra for entregue da forma como contratada e para atender exclusivamente às necessidades do locatário. Há quem discorde desse ponto, uma vez que, durante a construção o contratante (ocupante) remunera o contratado (empreendedor), afirmando alguns, que tal remuneração tem caráter de aluguel. Antes da edição da lei 12.744/12 tal denominação poderia ser considerada uma aberração, mas depois dela, muitos considerarão uma atecnia denominar os pagamentos feitos pelo agora locatário, ao locador, por outro nome que não aluguel, ainda que o locatário não esteja remunerando o gozo e uso da coisa que sequer está pronta.
Na locação pura e simples não há remuneração da coisa, mas sim do uso e gozo dela, o que, portanto, nos faz refletir sobre a inclusão desse contrato na Lei de Locação e a designação da remuneração como aluguel desde a primeira fase do contrato, qual seja, a da aquisição do terreno e sua construção ou reforma.
Como se vê, o contrato built to suit é formado pela conjugação de outros contratos, todos típicos, configurando-se como verdadeiro contrato misto.
Contratos mistos, na definição de Arnoldo Wald1 são criados pelas partes com a utilização simultânea de elementos de diversos contratos nominados. E complementa: contrato misto se distingue do atípico pois utiliza a regulamentação e a estrutura de contratos nominados, mas realiza uma fusão de diversos figurinos ou moldes num contrato só.
Diante dos apontamentos feitos, entendemos que não havia razão para a sua inclusão na lei de locação. Durante a tramitação do projeto de lei, alguns artigos foram publicados na internet justificando tal inclusão em nome da segurança jurídica dos contratantes, como se os contratos mistos, ou, ainda, atípicos não tivessem proteção legal.
Note-se que a proteção legal do CC aos contratos atípicos e mistos é muito maior e mais abrangente2 do que a proteção inserta na lei de locação, já que específica a determinado negócio (em linhas gerais, locação pura e simples).
Não se pode, em nome da segurança dos contratantes, engessar um modelo de negócio imobiliário complexo e multidisciplinar, inserindo-o num diploma legal específico e limitado às situações por ele acobertadas.
Ou seja, o legislador inseriu o contrato num diploma legal restritivo do ponto de vista do objeto da contração (coisa infungível, remuneração pelo gozo e fruição da coisa, prazo certo, limitação das garantias, formas de execução do contrato, penalidades pela inexecução, etc.) dando liberdade para as partes contratarem livremente, prendendo-as, porém, nos procedimentos da lei de locação. O legislador nada mais fez do que dar com uma mão e tirar com a outra.
Ora, o contrato misto, que não é de locação pura e simples, estará vinculado aos procedimentos da lei 8.245/91 que, apesar de salutares e revolucionários do ponto de vista processual, com a previsão de várias tutelas de urgência, não se adequa inteiramente às condições do negócio imobiliário complexo que é o contrato built to suit.
Como se viu, esse modelo de negócio contempla em si mesmo várias relações jurídicas que não só aquela firmada entre locador e locatário. Há a relação jurídica entre vendedor e comprador, entre construtor e proprietário do terreno, entre locador e locatário. Não se pode limitar a atuação procedimental das partes unicamente à lei 8245/91.
Em nosso humilde entendimento, teria o legislador agido com mais acerto se tivesse incorporado esse contrato no contexto do CC, diploma que contém um espectro bem amplo na questão da inexecução das obrigações e princípios, relegando ao CPC os procedimentos destinados à tutela jurisdicional invocada pelas partes, já que este último diploma legal se constitui em um código de procedimentos e princípios de largo espectro também.
1 – In op. cit, p. 169.
2 – O Capítulo I – Disposições Gerais – do Título V – Dos contratos em geral – do Código Civil Brasileiro bem revela tal conclusão, ex vi, inclusive, do artigo 425.
Fonte: Advocacia Salomé