Por Nelson Rosenvald
Justo título é o instrumento que conduz um possuidor a iludir-se por acreditar que ele lhe outorga a condição de proprietário. Trata-se de um título que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idôneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impeça a sua aquisição. Em outras palavras, é o ato translativo inapto a transferir a propriedade por padecer de um vício de natureza formal ou substancial.
Em nosso ordenamento civil, o justo título recebe duplo significado: (a) no art. 1.201 do Código Civil, a expressão colhe acepção ampla, significando qualquer causa que justifique uma posse; (b) no art. 1.242, o justo título é interpretado restritivamente como um título apto em tese para transferir propriedade e outros direitos reais usucapíveis. O sentido amplo do justo título para fins de posse é extraído ainda do Enunciado nº 303 do Conselho de Justiça Federal: “Considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”.
No sistema brasileiro, a transferência da propriedade demanda que sejam feridos os três planos do negócio jurídico: existência, validade e eficácia. Não sendo satisfeita uma das três esferas, inexiste transmissão de propriedade, pois nada se adquire quando não se aliena.
O justo título pode se concretizar em uma escritura de compra e venda, formal de partilha, carta de arrematação, enfim, um instrumento extrinsecamente adequado à aquisição do bem por modo derivado. Importa que contenha aparência de legítimo e válido, com potencialidade de transferir direito real, a ponto de induzir qualquer pessoa normalmente cautelosa a incidir em equívoco sobre a sua real situação jurídica perante a coisa.
Releva perceber a atuação do tempo sobre o justo título, pois o transcurso do prazo de usucapião poderá expurgar o vício originário. Se o possuidor mantiver a posse ininterrupta pelo prazo variável de cinco a dez anos, com boa-fé, o tempo encarregar-se-á de sanar os defeitos originários do justo título, convertendo-o em um título justo para afirmar a nova propriedade.
O justo título dispensa a formalidade do registro para fins de usucapião. Nesse diapasão, foi editado o Enunciado nº 86 da Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho de Justiça Federal: “A expressão justo título, contida nos arts. 1.242 e 1.260 do CC, abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente do registro”. Dessa forma, há de se admitir a promessa ou compromisso de compra e venda como justo título apto a gerar usucapião, mesmo que desprovido de registro.
É de se anotar que a Súmula 84 do mesmo STJ preceitua ser “admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”. Daí se extrai que, se a posse imobiliária no Brasil não é objeto de registro no RGI, a falta desse ato prejudicará o interessado em lides petitórias, mas não será obstáculo para a oposição de embargos de terceiro ou ajuizamento de usucapião, eis que em ambos o objeto da demanda será uma questão puramente possessória.
Sabemos que o registro do justo título é dispensado para fins de êxito em uma ação de usucapião ordinária. Todavia, essa assertiva recebe críticas. Parte da doutrina considera que o possuidor que não levou seu título ao registro imobiliário não poderá incidir em erro quanto à situação de proprietário. Destarte, não poderia existir boa-fé – falsa convicção de dono – com aquele que possui um título que sequer sofreu avaliação positiva ou negativa por parte do registrador.
Contudo, parece-nos que, se o possuidor efetivamente registra o justo título, já será proprietário e não necessitará da usucapião a posteriori, a fim de obter uma espécie de ratificação de uma titularidade já existente. Seria carecedor de ação por ausência de interesse de agir, ao ingressar com a ação de usucapião, por evidente superfetação, eis que as posições de autor e réu confundir-se-iam na relação processual (pois o proprietário é o legitimado passivo). Essa é a posição de Orlando Gomes, que vê no justo título meramente um título que possui a faculdade abstrata de transferir a propriedade.
Dirimindo o conflito de posicionamentos, o Código Civil soluciona o imbróglio no art. 1.242, ao admitir a convivência harmoniosa entre ambas as formas de justo título. Depreende-se da leitura do caput que, se o possuidor não registrou o justo título, a sua usucapião será alcançada em dez anos, contentando-se com a demonstração do título hábil.
Todavia, cumpridos três requisitos cumulativos do parágrafo único do art. 1.242, o prazo será reduzido pela metade, exigindo-se apenas cinco anos de posse ad usucapionem. Quais sejam: (a) justo título de caráter oneroso, isto é, aquisição do imóvel mediante compra e venda ou dação em pagamento. Sendo o justo título uma doação ou formal de partilha, o prazo volve ao caput do artigo, ou seja, dez anos; (b) ter sido o justo título objeto de registro pelo usucapiente, porém cancelado pelo atual proprietário posteriormente ao prazo de cinco anos de posse titulada com registro pelo usucapiente, pois, se o cancelamento se der antes do lustro, interrompe-se a contagem da usucapião. Por outro lado, se não houvesse o cancelamento do título registrado, o usucapiente já seria proprietário pelo modo de aquisição derivada do registro, sendo carecedor de ação de usucapião; (c) além do justo título oneroso e registrado, acrescido à boa-fé, o usucapiente provará o exercício da posse qualificada pela função social, seja pela moradia estabelecida sobre o imóvel ou pela realização de investimentos de interesse social e econômico. No que tange à moradia ou efetivação de investimentos no bem imóvel, cuidam-se de dois requisitos alternativos – e não cumulativos – que serão aferidos pelo magistrado por todo o lapso aquisitivo.
Aliás, se o cancelamento decorre de negócio jurídico nulo ou anulável, incide a regra. Da mesma maneira, se o cancelamento resulta de qualquer erro formal do registro de imóvel, ou se a escritura é falsificada – e porventura, o negócio é inexistente –, há possibilidade de aplicação do dispositivo e a usucapião aperfeiçoa-se em cinco anos.
Não há motivo de preocupação quanto a qualquer colisão da usucapião ordinária de cinco anos com as espécies de usucapião especial urbana e rural (arts. 183 e 191 da CF). Apesar da coincidência temporal quanto ao lustro legal e da imposição comum de função social à propriedade, os demais requisitos são diferenciados. Se, por um lado, a usucapião constitucional é facilitada pela dispensa do justo título e boa-fé, por outro ângulo é restringida pela limitação de área máxima dos imóveis (250 m² ou 50 h) e pela exigência de o possuidor não ser proprietário de outro imóvel ou não poder ver o seu direito reconhecido mais de uma vez – restrições estas não apreciáveis na usucapião ordinária.
Três são as modalidades mais comuns de vícios formais e substanciais que podem converter um ato jurídico defeituoso em justo título para aquisição pela usucapião.
a) Venda a non domino
O transmitente não é dono da coisa, mas o adquirente está na convicção de que trata com o proprietário, pois o título é instrumentalmente perfeito e seria capaz de iludir qualquer pessoa naquela situação. Em princípio, não há transmissão de propriedade, prevalecendo a máxima nemo plus iuris – ninguém pode dispor de mais direitos do que tem. Daí a importância do tempo na erradicação do que em princípio seria até mesmo vício de inexistência do negócio jurídico em face do verdadeiro proprietário.
Daí a exigência quanto à real existência do título transmissivo formalizado. Não se pode cogitar de um justo título putativo, pois aquele que se julga proprietário, com base em uma situação de aparência, apenas terá acesso à usucapião extraordinária.
Imagine-se a situação de A, que adquire um imóvel de B, em uma venda a non domino, pois o verdadeiro proprietário do imóvel era C, pessoa que não prestou o seu consentimento à suposta aquisição. Bastará ao real proprietário o ajuizamento de uma ação declaratória para obter o cancelamento de eventual registro, a fim de ser destruída a sua aparência, eis que só é possível invalidar aquilo que exista. Mesmo que ocorram sucessivas transmissões do mesmo bem, o fato de a primeira venda ser a non domino acarreta um vício de origem que não impede que o proprietário possa buscar a coisa contra o titular atual, mesmo que não tenha dado início à cadeia sucessória.
Para o proprietário o negócio realizado entre terceiros é res inter alios acta. Sendo negócio inexistente para o proprietário, não fica ele vinculado nem comprometido pelo negócio jurídico do qual não participou e que na maioria dos casos nasceu de uma falsificação de escrituras e utilização de documentos adulterados.
Mesmo tendo o adquirente a non domino efetuado o registro do título, tal condição não impedirá que o verdadeiro proprietário reivindique a coisa, pois não se adotou aqui o sistema da fé pública – como no direito alemão. Todavia, aquele que confiou na aparência de legalidade e segurança do registro apenas merecerá proteção residual e mediata, através da aquisição pela usucapião ordinária do parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil.
b) Título com vício que gera invalidade
O transmitente é o verdadeiro proprietário do bem, mas o ato jurídico é eivado de vício passível de invalidação por nulidade ou anulabilidade.
Nesses casos, o título de aquisição se formou com a participação do verdadeiro dono. O negócio jurídico atende ao plano de existência, mas padece de vício que acarreta a nulidade ou a anulabilidade. Exemplificando, imóvel alienado por um dos cônjuges que omite sua condição de casado ao adquirente, ou do relativamente capaz que transfere propriedade, sonegando sua condição de menor púbere. Nos dois casos, se o cônjuge prejudicado ou o assistente do menor não ajuizarem ação anulatória no prazo decadencial, os vícios cederão por confirmação tácita ao ato (art. 178, CC).
Aliás, mesmo sendo absoluto o vício contido no título, a ponto de o defeito do negócio jurídico gerar nulidade por ofensa à norma de ordem pública, poderá este ser considerado justo título e alicerçar o pleito da usucapião ordinária, caso preenchidos os requisitos formais. Em princípio, dispõe o art. 1.268, § 2º, do Código Civil, que “não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo”. Se a transferência não se opera imediatamente, será possível a sanação mediata do vício pela via da usucapião.
Embora o ato seja nulo por defeito de forma (art. 166, IV, do CC), poderá o vício ser sanado com a usucapião ordinária caso não existam outros fatores de invalidade do título. Exemplificando: se A adquire o imóvel de B, mediante instrumento particular, quando o ato demandava a solenidade da escritura pública, poderá, após o período de dez anos, tornar-se proprietário.
Atualmente, é possível afirmar que o negócio jurídico poderá ser consolidado pelo decurso do tempo, pois nenhum direito poderá sobreviver à inércia de seu titular indefinidamente. Essa situação de indefinição estimularia a quebra da paz social e a ofensa ao princípio da segurança jurídica – considerada como a estabilidade social das relações jurídicas. Vale a lembrança de que, em conformidade com o art. 205 do Código Civil, o prazo máximo de prescrição será de dez anos. Assim, mesmo um título originariamente nulo, poderá ser convertido em propriedade, mediante o fator tempo.
c) Título que não atende ao plano de eficácia
Por derradeiro, há casos em que o negócio jurídico atende aos planos de existência e validade, porém, apesar de a alienação ter sido realizada pelo verdadeiro proprietário, sem qualquer causa de nulidade ou de anulabilidade, há algum fator de eficácia que deixou de ser atendido.
Em suma, o justo título poderá emanar de uma dessas três situações, sempre sendo aferido pelo magistrado conforme as circunstâncias do caso.
Presentemente, já se tem aceitado a promessa de compra e venda como justo título quando o promissário comprador tiver quitado todas as prestações do negócio jurídico, sendo insuficiente o mero pagamento do sinal ou de algumas parcelas.
De fato, se o promissário comprador integralizou o pagamento, culminou por adquirir o domínio, nada sobejando dos poderes dominiais com o promitente vendedor, que apenas conta com a formalidade da certidão de titularidade da propriedade.
Caso a promessa de compra e venda, além de quitada, tenha sido registrada pelo promissário comprador no RGI, o prazo para a usucapião ordinária será de apenas cinco anos, na forma do art. 1.242, parágrafo único, do Código Civil. Com efeito, muitas vezes será bem mais prático ao promissário comprador recorrer a essa pretensão do que ajuizar ação de adjudicação compulsória em face de herdeiros do promitente vendedor.
Complementando a explanação sobre esse árduo e fascinante tema, não se descure que o justo título deve caracterizar o imóvel de forma cristalina (venda ad mensuram), pois a equivocada convicção de dono do possuidor limita-se rigorosamente à área e à metragem descritas no instrumento que possui. Caso contrário, ele, ardilosamente, poderia prevalecer-se de posse sobre área superior à titulada e requerer usucapião ordinária sobre as medidas da escritura, além do excesso. Sobre essa área a maior poderá eventualmente ajuizar usucapião extraordinária. Em suma, se o justo título não abranger a área retificanda, não poderá sobre ela ensejar usucapião ordinária.
Também não o auxilia eventual alegação de compra ad corpus, pois, mesmo sem exatidão de dimensões, o imóvel vendido deverá ser designado por limites certos, daí só podendo haver usucapião dentro daquelas divisas exatas. A ação de retificação de registro será manuseada, sem recurso à via contenciosa, quando o título não exprimir a verdade, desde que respeitadas a descrição e a confrontação do imóvel.
Mesmo não tendo o possuidor alcançado a usucapião, a simples constatação do justo título – conjugada à boa-fé – faculta-lhe o direito de indenização e retenção por benfeitorias (art. 1.219 do CC), além da apropriação de todos os frutos percebidos na constância da boa-fé (art. 1.214 do CC).
Valer-se-á ainda o possuidor com justo título, que perdeu o domínio em face do reivindicante, do direito à evicção contra o alienante que o resguardou no ato da alienação, perante terceiros, pelo eventual sacrifício da propriedade (art. 447 do CC). Postulará o evicto o valor atual do imóvel (as acessões posteriores serão reclamadas do reivindicante) e os demais prejuízos resultantes da perda da coisa, como despesas contratuais, custas judiciais, encargos de sucumbência da lide reivindicatória e juros moratórios.
Mas o justo título isoladamente não conduz à usucapião ordinária. Em todo o transcurso do prazo aquisitivo, necessariamente contará o possuidor com a boa-fé.
Boa-fé é o estado subjetivo de ignorância do possuidor quanto ao vício ou obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa (art. 1.201 do CC). Para fins de usucapião, resulta na convicção de que o bem possuído lhe pertence. Ao adquirir a coisa, falsamente supôs ser o proprietário.
A boa-fé, portanto, é mais que o animus domini. Enquanto a maior parte dos possuidores detém intenção de dono – mas sabem que não o são –, o possuidor com boa-fé incide em estado de erro, que gera nele a falsa percepção de ser o titular da propriedade. A boa-fé também é chamada de opinio domini, pois o possuidor literalmente tem a opinião de dono. De forma lúdica, a mesma diferença entre animus domini e boa-fé é vista no comportamento do neurótico e do psicótico: o primeiro busca a coisa para si obsessivamente; já o segundo acredita piamente que ela já lhe pertence.
Sendo o estado psicológico de boa-fé conservado pelo prazo de cinco ou dez anos, o possuidor obterá a usucapião ordinária. Ao revés, o possuidor apenas dotado de animus domini terá de aguardar prazo mais elástico da modalidade extraordinária.
Definitivamente, só poderá alegar boa-fé para fins de usucapião o possuidor municiado de um justo título. Esse é o elemento objetivo que presume a convicção de dono do possuidor, consoante o exposto no parágrafo único do art. 1.201 do Código Civil. Há a possibilidade de haver justo título sem boa-fé; basta pensarmos no possuidor que em determinado instante toma ciência dos vícios da posse. Porém, para fins de redução do prazo da usucapião, uma coisa não pode prescindir da outra.
Por isso, com rara felicidade, Caio Mário conceitua a boa-fé como a “integração ética do justo título”, pois reside na convicção do possuidor de que o fenômeno jurídico gerou a transmissão da propriedade.
Essa presunção é de caráter apenas juris tantum, pois existem casos em que o detentor do justo título conhece a origem viciosa ou os defeitos da posse, fato que acarretará sua má-fé, independentemente de qualquer conduta a ser adotada na via judicial pelo retomante. De qualquer forma, exibido o justo título, fica dispensado o possuidor de provar a boa-fé, cabendo à parte contrária realizar a prova da má-fé do usucapiente.
Quando a boa-fé for constituída desde os primórdios da posse, caberá àquele que pretende opor-se a ela ajuizar a competente ação possessória ou petitória para converter a boa-fé em má-fé, a contar do momento da citação (art. 1.202, CC). É nessa fase de convocação à lide que o possuidor abandona o seu estado de ignorância e passa a conhecer as razões de inconformidade à sua posse. Claro que a transmudação da boa-fé em má-fé é consequente somente de uma sentença procedente transitada em julgado que venha a acolher a pretensão do autor, pois, em caso de improcedência, restará reforçada a boa-fé do possuidor.
Fonte: Carta Forense