Consta que dois farsantes, passando-se por exímios alfaiates vindos de terras distantes, dizem ao Rei que trazem consigo tecido tão nobre que apenas as pessoas mais inteligentes e honestas são capazes de enxergar. O Rei, encantado com a singular fazenda, contrata os serviços dos supostos tecelões. Após alguns meses, os embusteiros levam a “roupa nova” ao Rei, que, embora nada vendo, temeroso de que duvidem de sua sabedoria, elogia efusivamente a vestimenta, e decide desfilar pela cidade acompanhado da comitiva real. O povo, atônito com a cena pitoresca, mas não querendo passar por tolo, brada a beleza e suntuosidade da indumentária real, até que uma criança, no meio da multidão, denuncia: “Olha, olha! O Rei está nu!”. Ninguém consegue segurar o riso. O Rei, percebendo que foi enganado, muito constrangido, corre a esconder-se no palácio.1
A cláusula resolutiva expressa tem desfilado pelos debates judiciais e acadêmicos de longa data. Instrumento valioso de gestão do risco contratual, encerra mecanismo de autotutela dos interesses do credor, liberando-o de se submeter à atuação judicial para resolver a relação obrigacional que se tornou disfuncionalizada, incapaz de cumprir o programa negocial traçado pelas partes em razão do inadimplemento absoluto do devedor; a resolução se opera por meio de simples declaração receptícia de vontade do credor, nos termos do art. 474 do Código Civil.
Note-se que a declaração pela qual o credor faz chegar ao devedor sua opção pela resolução não se confunde com a interpelação do devedor para constituição em mora. Trata-se de declarações distintas, com suportes fáticos e funções que não se confundem: enquanto a declaração sobre a qual se discorre pressupõe o inadimplemento absoluto e tem por função resolver a relação obrigacional, não conferindo ao devedor a possibilidade de cumprir a prestação, a interpelação para constituição em mora requer apenas o inadimplemento relativo, e visa inaugurar a mora do devedor, concedendo-lhe prazo para purgá-la. De todo modo, havendo termo para o adimplemento, a mora é ex re e dispensa qualquer interpelação (art. 397, CC). Algumas leis especiais, todavia, mesmo em presença de termo contratual, exigem a interpelação do devedor para constituição em mora, o que excepciona a disciplina geral. É o que se passa, justamente, no âmbito de promessa de compra e venda de imóveis loteados (art. 32, Lei nº 6.766/79) e não loteados (art. 1ª, Decreto-Lei 745/69).
Em sistemas em que a resolução se opera por mera declaração do credor, a judicialização da extinção da relação obrigacional pode ocorrer por iniciativa do devedor. Cabe ao devedor, insatisfeito com a resolução, recorrer à intervenção judicial, que será meramente fiscalizadora da legitimidade do exercício da autonomia privada na elaboração da cláusula resolutiva e do efetivo preenchimento dos pressupostos da resolução. A atuação do julgador será a posteriori e, verificada a regularidade da extinção do vínculo, a sentença será declaratória, reconhecendo a resolução ope voluntatis.
Por vezes, no entanto, o próprio credor precisa recorrer ao Poder Judiciário para que se produzam os efeitos materiais da resolução, o que não significa que a própria resolução tenha que ser efetivada da mesma forma. A eventual necessidade de ajuizamento de ação para a reintegração de posse ou para a liquidação dos danos, por exemplo, não torna necessário que o credor também recorra ao Judiciário para resolver a promessa de compra e venda: resolve-se a relação extrajudicialmente e ajuíza-se a ação para a reintegração ou liquidação dos danos. Cuida-se de problemas distintos, a serem solucionados em esferas também distintas.
Posto a operatividade da cláusula resolutiva expressa seja amplamente reconhecida pela jurisprudência,2 quando a demanda versa sobre promessa de compra e venda de imóveis, o cenário muda, e parte das decisões exige que a resolução se processe judicialmente.3 Todavia, não parece haver, nesses casos, fundamento jurídico que justifique o afastamento do regime legal da cláusula resolutiva expressa. Embora se reconheça que semelhantes contratações envolvem, muitas vezes, especial interesse do promitente comprador – aquisição da casa própria -, revestindo-se de relevância social justificadora da intervenção protetiva do Estado, é preciso considerar, como antes sublinhado, que a própria lei já flexibilizou a disciplina do Código Civil ao exigir a notificação do promitente comprador para constituição em mora, mesmo que do contrato conste termo para adimplemento. Todavia, a única peculiaridade que referidas leis impõem é a notificação para constituição em mora, após a qual, não havendo pagamento e presente a cláusula resolutiva expressa, a resolução se opera extrajudicialmente.
Ante a resistência à efetividade da cláusula aposta em promessas de compra e venda, editou-se a Lei 13.097/15, que alterou o artigo 1º do Decreto-Lei 745/69, cujo parágrafo único passou a reconhecer expressamente a possibilidade de resolução extrajudicial. Embora se mostre auspicioso que decisões posteriores à alteração legislativa tenham reconhecido a plena eficácia da cláusula resolutiva expressa,4 outras não o fizeram ao argumento de que a modificação promovida pela Lei nº 13.097 teria alcançado apenas as promessas referentes a imóveis não loteados, não já os incorporados (Leis nºs 4.591/64) e tampouco os imóveis urbanos loteados (Lei 6.766/79).5
O entendimento, contudo, não colhe. Isso porque a resolução extrajudicial facultada pela cláusula resolutiva expressa não foi autorizada pela referida alteração. A Lei 13.097/15 apenas ratificou a regra geral constante do art. 474 do Código Civil, que só pode ser afastada por previsão legal específica. E não há, em relação a qualquer espécie de promessa de compra e venda, disposição que excepcione a regra. Ao contrário. A legislação especial parece mesmo apontar para a possibilidade de resolução extrajudicial.
No que tange aos imóveis incorporados, a Lei 4.591/64, no art. 63, estabelece que “é lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando for o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nele se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato” (grifou-se).6 Note-se que o dispositivo autoriza a “rescisão [sic] do contrato, conforme nele se fixar”, ou o leilão do imóvel. Ora, se a lei se refere à “rescisão [sic] do contrato, conforme nele se fixar”, é porque o contrato pode prever forma de resolução que não a legal, ou seja, que não aquela decorrente da cláusula resolutiva tácita, o que indica a possibilidade de previsão de cláusula resolutiva expressa e, por consequência, de resolução extrajudicial.
Observem-se, ainda, os arts. 35-A e 67-A, introduzidos pela Lei 13.786/2018, a Lei dos Distratos Imobiliários. O primeiro estabelece que os contratos de promessa de compra e venda de unidades autônomas integrantes da incorporação imobiliária serão iniciados por quadro-resumo que, dentre outras informações, deverá conter, nos termos do inciso VI, “as consequências do desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual motivada por inadimplemento de obrigação do adquirente ou do incorporador, com destaque negritado para as penalidades aplicáveis e para os prazos para devolução de valores ao adquirente”. O dispositivo, ao admitir o desfazimento do negócio por meio de distrato ou de resolução motivada por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente ou do incorporador, não faz qualquer restrição ao processamento da resolução. Exige-se apenas que as penalidades aplicáveis e os prazos para devolução de valores estejam negritados. Nesse cenário, além de não haver qualquer limitação à eficácia da cláusula resolutiva expressa, sequer se poderia exigir que lhe fosse dado o destaque negritado, já que a resolução extrajudicial não ostenta a natureza de penalidade ao inadimplemento.
O art. 67-A, por sua vez, trata das quantias a serem restituídas ao adquirente caso incorra em inadimplemento absoluto. Conforme já se observou em outra sede, a cláusula contratual que prevê a retenção de parcelas e a consequente restituição das demais ao promitente comprador se qualifica como “cláusula penal compensatória, cuja função é prefixar as perdas e danos. O intuito do legislador ao prever referidas porcentagens foi, inequivocamente, limitar a autonomia privada na fixação do montante da cláusula, impondo uma ‘tarifação’ da indenização devida em caso de desfazimento do contrato”.7 Semelhante previsão em nada impede ou embaraça a resolução extrajudicial. Em verdade, reforça-a, já que a cláusula contratual relativa à retenção dispensa o promitente vendedor de ir a juízo liquidar suas perdas e danos; tudo se passa extrajudicialmente: a resolução e a produção de seus respectivos efeitos indenizatório (retenção do percentual contratualmente previsto pelo promitente vendedor) e restitutório (restituição do que sobejar ao promitente comprador).8
Em relação aos imóveis loteados, tampouco se identifica na Lei 6.766/79 qualquer restrição à resolução extrajudicial. A rigor, bem analisados os seus dispositivos, a lei parece incentivar a resolução extrajudicial ao conferir ao credor instrumentos de tutela que independem da intervenção do Poder Judiciário. O art. 32, por exemplo, determina que vencida e não paga a dívida, o contrato será considerado resolvido 30 (trinta) dias após a constituição em mora do devedor. Já o § 2º do art. 34, introduzido também pela Lei dos Distratos Imobiliários, prevê que “[n]o prazo de 60 (sessenta) dias, contado da constituição em mora, fica o loteador, na hipótese do caput deste artigo, obrigado a alienar o imóvel mediante leilão judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997” (grifou-se).9 Não há, com efeito, qualquer previsão na Lei 6.766/79 que possa conduzir o intérprete a mitigar a eficácia da cláusula resolutiva expressa e vislumbrar a obrigatoriedade de a resolução se processar judicialmente.
Por fim, nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor causa embaraço à resolução extrajudicial. O art. 53 se limita a impedir a retenção total das parcelas pagas pelo promitente vendedor, e passa ao largo de qualquer discussão sobre a operatividade da resolução, a remeter a questão, necessariamente, para o art. 474 do Código Civil. Da mesma forma, o art. 51, XI, que fulmina de nulidade cláusula que autorize “o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor” tampouco cuida de resolução, vale dizer, de extinção do vínculo obrigacional em razão do inadimplemento absoluto do consumidor, mas sim de denúncia, ou seja, de extinção do vínculo obrigacional por força de declaração de vontade imotivada do fornecedor.
Uma última questão há de ser pontuada. Mesmo que a promessa de compra e venda esteja registrada no Registro de Imóveis, cuidando-se de contratos regidos pela Lei 6.766/79 (art. 32, §3º) ou pelo Decreto-Lei 58/37 (art. 14, §3º), resolvida extrajudicialmente a relação obrigacional, o registrador deve proceder ao cancelamento do registro mediante simples prova do inadimplemento, que se faz por meio da “certidão de não haver sido feito o pagamento em cartório”, por força de expressa determinação legal. O procedimento é, portanto, administrativo.
Embora a Lei de Incorporação Imobiliária não preveja expressamente a possibilidade de os registradores cancelarem o registro da promessa de compra e venda uma vez resolvida a relação obrigacional, o que pode levá-los a oferecer alguma resistência a fazê-lo, é possível que as próprias partes lhes atribuam essa incumbência por meio de específica disposição contratual, em conformidade com o disposto no art. 63 da referida lei. Com efeito, podem as partes prever cláusula resolutiva expressa segundo a qual o promitente vendedor poderá resolver de pleno direito a relação se o promitente comprador deixar de pagar 3 prestações do preço e, constituído em mora por meio de notificação por cartório, não a purgar perante o referido cartório no prazo de 10 dias. Deve, ainda, o contrato conferir poderes expressos para o registrador cancelar o registro da promessa se o pagamento não for realizado (o que é certificado pelo próprio cartório após o decurso do prazo concedido para a purgação da mora) e o contrato for resolvido, mediante requerimento do promitente vendedor. Nesse cenário, o registrador está absolutamente seguro quanto ao cancelamento, já que há prova inequívoca do inadimplemento bem como autorização expressa das partes para que ele o realize. Assim, tudo ocorre, também, administrativamente. A solução, em verdade, vai ao encontro da desjudicialização dos remédios conferidos ao promitente vendedor, cujo exemplo mais emblemático é o leilão extrajudicial, e se mostra consentânea com o procedimento adotado para as promessas de compra e venda de imóveis loteados e não loteados.
De todo modo, se a promessa de compra e venda não contiver referida cláusula, no pior cenário possível, o cancelamento do registro constituirá efeito material da resolução, para cuja efetivação pode ser necessário o pronunciamento judicial por exigência do registrador. Nesse caso, o promitente vendedor resolve a relação obrigacional por simples notificação ao promitente comprador e, na sequência, ajuíza a ação a fim de que o juiz determine o cancelamento do registro. Todos os efeitos da resolução que independam de intervenção judicial se produzem desde a notificação resolutiva, a exemplo da liberação das partes do adimplemento de suas prestações bem como da retenção do valor contratualmente previsto e devolução do excedente ao promitente comprador.
Em definitivo, a alteração promovida pela Lei 13.097/15 não pretendeu restringir a possibilidade de resolução extrajudicial às promessas de compra e venda de imóveis não loteados, mas apenas confirmar a forma pela qual se opera a resolução diante de cláusula resolutiva expressa, qualquer que seja o imóvel objeto do contrato. Embora louvável o esforço da doutrina e da jurisprudência em tutelar o promitente comprador, sobretudo tendo em vista a relevância social de que se revestem as promessas de compra e venda, não se identifica, juridicamente, qualquer empecilho à plena eficácia da cláusula resolutiva expressa no âmbito dessas contratações. A resolução extrajudicial – que, a um só tempo, prestigia a autonomia privada e promove segurança jurídica – há de ser garantida, e outros instrumentos de tutela legalmente previstos devem ser utilizados para proteger a posição do adquirente.
É chegada a hora de avisar ao Rei que, por aqui, ele está seminu…
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1 Baseado no conto O rei está nu, de Hans Christian Andersen.
2 TJ/RJ, 24ª CC, Rel. Des. Sérgio Wajzenberg, AC 0035062-45.2013.8.19.0001, julg. 27.04.2016; TJRJ, 13ª CC, Rel. Des. Gabriel Zefiro, AC 0071083-54.2012.8.19.0001, julg. 16.09.2014; TJPR, 12ª CC, Rel. Umberto Guaspari Sudbrack, AC 70066824764, julg. 30.08.2016; TJSP, 28ª CDPriv., Rel. Des. Gilson Delgado Miranda, AC 0021370-86.2009.8.26.0562, julg. 24.02.2015; TJPR, 7ª CC, Rel. Des. Fábio Haick Dalla Vecchia, AC 1.187.541-1, julg. 22.07.2014; TJDF, 4ª TC, Rel. Des. Arnoldo Caminho de Assis, AC 20110111863536, julg. 30.01.2013.
3 STJ, 4ª, T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, REsp 204.246/MG, publ. DJ 24.2.2003; STJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Resp. 620.787/SP, julg. 28.04.2009; TJMG, 15ª CC, Rel. Des. José Affonso da Costa Côrtes, AI 1.0024.11.026503-0/001, julg. 19.05.2011.
4 TJ/SP, 1ª CDPriv., Rel. Des. Rui Cascaldi, AI 2079575-67.2016.8.26.0000, julg. 06.07.2016.
5 TJ/SP, 36ª CDPriv., AC 1121866-85.2019.8.26.0100, Rel. Des. Milton Carvalho, julg. 04.08.2020.
6 A Lei 4.864/65, no art. 1º, VI, ratifica que a resolução requer atraso mínimo de 3 meses.
7 TERRA, Aline de Miranda Valverde; MAIA, Roberta Mauro Medina. Notas sobre a natureza e o regime jurídico da retenção de parcelas autorizada pela Lei dos Distratos. In: Migalhas. Migalhas de responsabilidade civil. Publicado em 17 set. 2020. Disponível em: clique aqui.
8 Sobre o tema, seja consentido remeter a TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 204.
9 Caput do art. 34: “Em qualquer caso de rescisão por inadimplemento do adquirente, as benfeitorias necessárias ou úteis por ele levadas a efeito no imóvel deverão ser indenizadas, sendo de nenhum efeito qualquer disposição contratual em contrário.”
Fonte: Migalhas