Por Leonardo Toledo da Silva e Rodrigo Esposito Petrasso
Foi publicada, no início do mês de dezembro de 2017, a segunda edição atualizada e ampliada de três dos principais “Books” (“Red”, “Yellow”e “Silver” [1]) componentes do famoso “FIDIC Rainbow Suite” – assim coloquialmente denominada a coletânea das minutas-modelo de contratos de construção e de infraestrutura publicadas, desde o ano de 1999, pela Fédération Internationale des Ingénieurs-Conseils – FIDIC.
Os modelos contratuais propostos pela FIDIC desempenham papel fundamental nos mais distintos projetos de engenharia conduzidos em todo o mundo. As soluções sugeridas pelos Books, quando não adotadas literalmente (como ocorre, substantivamente, na Ásia, na África, no Oriente Médio e na Europa Oriental, por exemplo), têm servido, cada vez mais, como parâmetro para os variados arranjos negociais e financeiros esquadrinhados em todo o setor de infraestrutura, padronizando procedimentos e conferindo, com isso, a contratantes, financiadores e stakeholders em geral, níveis mais assertivos de previsibilidade, clareza e equidade na condução dos projetos.Não por outro motivo, a adoção das balizas contratuais sugeridas pela FIDIC vem sendo crescentemente demandada e estimulada, inclusive no Brasil, por grandes investidores e financiadores globais.
É bem verdade, no entanto, que, não raramente, vê-se a adoção um tanto afobada de parâmetros de minutas carregadas de responsabilidade, como a minuta “EPC turn key” (Silver Book), em contextos totalmente inapropriados. Há, ainda hoje, um certo despreparo para lidar com essas minutas.
De toda forma, a atualização dos aludidos Books, 18 anos depois da publicação da primeira edição do “FIDIC Rainbow Suite”, é, nesse cenário, fato muito relevante, com impactos significativos na forma como se pensam e se estruturam os contratos de infraestrutura em qualquer país. Vem esta revisão, aliás, em boa hora, uma vez que o desenvolvimento das soluções comerciais e dos instrumentos financeiros,especialmente na última década, já há muito demandava a efetivação de aprimoramentos e complementações mais abrangentes nos modelos contratuais em questão.
As inovações introduzidas visaram, em linhas gerais: (a) aprimorar os mecanismos de administração contratual; (b) tornar mais eficientes a análise e a solução de pleitos; (c) conferir mais equilíbrio e reciprocidade na alocação de riscos e responsabilidades, em contraposição à orientação anterior, mais favorável à Contratante, e, ainda; (d) prevenir, tanto quanto possível, o surgimento de controvérsias, mediante aclaramento de aspectos que, segundo a experiência dos últimos anos, eram fontes de debates e incertezas mais intensos.
Dentre as alterações introduzidas, sem prejuízo de outras, merecem destaque as seguintes:
1) Administração contratual: os procedimentos e os mecanismos relativos à administração contratual são, na nova edição dos Books, muito mais prescritivos e detalhados, inclusive no que concerne às medições e ao pagamento do preço do contrato. Houve, particularmente, a inserção de variadas obrigações específicas de comunicação, colaboração e compartilhamento de informações, com vistas a assegurar uma condução mais transparente e conjunta do empreendimento pelas partes;
2) Atribuições e responsabilidades do engenheiro [2]: embora o engenheiro continue a atuar, em princípio, em nome da contratante, as alterações introduzidas buscaram mitigar a necessidade de obtenção do prévio consentimento, pelo primeiro, para a implementação de variações ou soluções mais adequadas – algo que já existia, mas em menor grau, desde a primeira versão dos Books. Ao engenheiro foi outorgado, assim, papel proativo mais acentuado na análise e na decisão acerca de pleitos e de proposições construtivas em geral. Mais do que atender aos interesses da contratante, ao engenheiro se atribuiu, então, obrigação positiva mais clara de encorajar, imparcialmente, arranjos colaborativos, a bem de ambas as Partes e, principalmente, do próprio empreendimento;
3) Cronograma e plano de ataque: introduziram-se, para a contratada, obrigações mais rígidas quanto à especificação do cronograma físico e do plano de ataque – aqui incluído o dever de indicação precisa e clara, por exemplo, (a) das datas de início e de conclusão das obras, (b) das datas de liberação, de recebimento e de devolução das áreas, (c) do caminho crítico adotado e (d) da vinculação e do encadeamento lógico entre as fases e/ou parcelas das obras, conforme o caso. Previu-se, nessa linha, procedimento específico para a análise, discussão e validação prévias do “programme” pelo engenheiro ou pela contratante;
4) Circunstâncias adversas: foram ampliadas as hipóteses e as condições sob as quais cada Parte deve informar, à outra, a iminência ou a efetiva ocorrência de circunstâncias que possam afetar o desenvolvimento do empreendimento. A nova feição dos Books prevê que cada contratante deverá engendrar seus melhores esforços para noticiar, à outra, com antecedência razoável, qualquer evento que possa (a) afetar adversamente a consecução das obras, (b) atrapalhar a performance do projeto, depois da implementação, (c) majorar o preço do contrato ou (d) atrasar a conclusão dos serviços. A proposta serve a estimular a transparência e o a colaboração das partes no enfrentamento dos eventos desfavoráveis que possam se impor, com vistas a evitar conflitos futuros;
5) Condições climáticas: restringiu-se a possibilidade de extensão de prazos fundamentada em ocorrência de condições climáticas prejudiciais. Segundo a nova sistemática das minutas, só seriam admissíveis pleitos relacionados a intempéries que fossem realmente imprevisíveis – assim consideradas aquelas que destoem substancialmente do histórico meteorológico pertinente ao local das obras;
6) Pleitos: ao contrário do que ocorria na edição anterior, passou-se a prescrever que tanto o contratante quanto a contratada devem dar notícia de seus pleitos, e posteriormente detalhá-los, dentro de prazos definidos, sob pena de preclusão. Anteriormente, a limitação temporal era aplicável, em regra, apenas à contratada. O procedimento de apresentação, análise e discussão dos pleitos foi, na mesma linha, amplamente minudenciado, a fim de trazer mais segurança e de evitar a posterior formação de controvérsias. Objetivou-se, em verdade, dificultar a formulação e/ou a tramitação de pleitos para além da conclusão do empreendimento, garantindo-se, tanto quanto possível, que as discussões relativas ao projeto sejam resolvidas apenas durante a vigência das relações contratuais;
7) Dispute board: as novas minutas pretenderam fortalecer a figura do “Dispute Adjudication Board” (“DAB”). Este órgão, constituído e atuante desde o início do empreendimento, deverá atuar mais incisivamente na condução das atividades de prevenção de conflitos, visitando os locais das obras regularmente e avocando, inclusive, quando conveniente, a condução das tratativas referentes à solução de pleitos de que venha a ter conhecimento, ainda que sem provocação formal de qualquer das partes; e
8) Cláusulas alternativas: fora significativamente expandido o repertório de cláusulas alternativas, passíveis de eleição, pelas partes, em conformidade com as peculiaridades de cada projeto. De serem destacadas, nesse sentido, (a) a previsão de diferentes limites de responsabilidade, aplicáveis, por exemplo, a perdas e danos indiretos e consequenciais ou a danos objeto de seguros, e (b) a possibilidade de estabelecimento de marcos intermediários, concernentes a parcelas ou etapas das obras, mesmo que não haja imediata transferência dos riscos da posse dos trabalhos à contratante [3].
Importante consignar, todavia, que, embora as resenhadas novidades representem avanços admiráveis – mormente no que diz com o balanceamento de riscos e responsabilidades entre os contratantes –, o estabelecimento de procedimentos e deveres instrumentais mais extensos pode acabar por representar, em alguns casos, incrementos de despesas e imposições de burocratização indesejável. A adoção das novas diretrizes contratuais sugeridas pela FIDIC pode, pois, demandar, por parte dos atores do setor de infraestrutura, um período de acomodação mais ou menos extenso. É também recomendável, nesse sentido, que seja realizada a análise crítica da oportunidade de aceitação, caso a caso, de cada uma das soluções propostas, conforme as exigências de cada empreendimento.
*Leonardo Toledo da Silva, mestre e doutor em Direito pela USP, sócio da Toledo Marchetti e Oliveira Advogados e integrante do Conselho Jurídico do SindusCon-SP; Rodrigo Esposito Petrasso, advogado associado Toledo Marchetti e Oliveira Advogados.
[1] Em termos gerais, pode-se afirmar, segundo orientação da FIDIC, que o“Red Book” se presta, mais adequadamente, a prover as condições contratuais para obras de construção para as quais os projetos de engenharia devem ser elaborados e fornecidos pela contratante (dona da obra). O“Yellow Book”, de seu turno, é propriamente indicado para trabalhos de concepção e de construção atinentes a projetos elétricos e mecânicos e a edifícios em geral. O “Silver Book”, por fim, foi idealizado para empreendimentos em relação aos quais incumbem à contratada (empreiteira) todos os préstimos de engenharia, fornecimento e construção, para entrega do projeto em condições de operação (“EPC turnkey projects”).
[2] A figura do engenheiro (“engineer”), nas estruturas contratuais preconizadas pela FIDIC, tem atribuições extensas, variáveis de acordo com o projeto de que se cuide. Em regra, o engenheiro não se restringe à execução ou ao acompanhamento das atividades técnicas de engenharia e projetos (“Yellow” e “Red Books”); a ele se conferem, também, em larga medida, responsabilidades que tocam à administração e ao planejamento do empreendimento como um todo, de forma neutra e ponderada.
[3] Nesse caso, ainda que a contratante não venha a recepcionar ou aceitar a parcela das obras já concluídas, assumindo os respectivos riscos e responsabilidades, pode-se resguardar a possibilidade de cobrança, pela contratante, das cabíveis indenizações (“delay damages”), acaso ocorra o não cumprimento de qualquer marco intermediário pela contratada.
Fonte: SINDUSCON