Por Anderson Schreiber
A Medida Provisória 759, de 22 de dezembro de 2016, incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro o chamado direito de laje. Debatido pela doutrina desde os anos 90 – sendo notável, nesse sentido, a contribuição de Ricardo Cesar Pereira Lira (A Aplicação do Direito e a Lei Injusta, Elementos de Direito Urbanístico, entre outros) –, o direito de laje procura transpor para o ordenamento jurídico formal uma realidade que caracteriza as favelas verticalizadas de grandes centros urbanos, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. Em favelas verticalizadas, afigura-se extremamente frequente o uso da laje por terceiro de modo independente do uso dado pelo possuidor do imóvel subjacente, transferindo-se esse “direito costumeiro” de pessoa a pessoa, com base em assentamentos mantidos por associações de moradores.
A MP 759/2016 tem o mérito de reconhecer essa realidade, mas incorre em diversos equívocos ao disciplinar o que denominou de direito real de laje. Em primeiro lugar, ao introduzir o novo art. 1.510-A do Código Civil, a referida Medida Provisória afirma que o direito real de laje “consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.” Ora, o direito real de laje pressupõe a possibilidade de coexistência, mas não consiste nessa possibilidade: consiste, antes, no direito de uso da laje, entendida como superfície de uma construção subjacente, direito a que a ordem jurídica vem atribuir em boa hora natureza real e eficácia erga omnes.
Também não foi feliz a Medida Provisória ao afirmar que a cessão do direito de laje deve se dar “a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”. A vinculação finalística, que se compreenderia se voltada à tutela da moradia, faz pouco sentido da forma puramente estrutural como restou veiculada. Ademais, um instituto que visa reconhecer uma situação fática já existente deveria prestar homenagem à realidade, partindo do princípio de que a unidade já pode ter sido edificada.
Há, ainda, outros equívocos conceituais: o §1o do art. 1.510-A afirma que “o direito real de laje somente se aplica quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos.” O preceito parece desconhecer a noção de sobreposição e alude a uma insólita “solidariedade” de terrenos. A redação do §1o é tão confusa que Ricardo Lira chegou a afirmar que o dispositivo “é absolutamente ininteligível” em conferência proferida recentemente na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, durante profícuo evento do Forum de Direito da Cidade, presidido por Marcos Alcino de Azevedo Torres. Na mesma ocasião, destacou Lira a lamentável opção da MP 759/2016 ao vedar a instituição pelo titular do direito real de laje de “sobrelevações sucessivas” (art. 1.510-A, §5o). Tal proibição contradiz a prática, comum em inúmeras comunidades cariocas (Rocinha, Dona Marta, entre outras), de se chegar ao terceiro ou quarto nível de edificação.
Falha também a MP 759/2016 ao afirmar que o titular do direito real de laje responderá pelos “encargos e tributos” que incidirem sobre a sua unidade (art. 1.510-A, §4o), sem estabelecer ou, ao menos, ressalvar a necessidade de criação de benefícios tributários que estimulem a efetiva aquisição do direito real de laje. Conquanto tenha isentado de “custas e emolumentos” o primeiro registro do direito de laje (art. 11, VII), a Medida Provisória em comento nada disse sobre os tributos que pesarão sobre o titular, desincentivando, com essa omissão, a formalização de uma situação faticamente já consolidada e usualmente respeitada no âmbito da própria comunidade.
Deixou, ainda, a MP 759/2016 de exprimir algumas noções fundamentais à efetividade do direito de laje: por exemplo, não declarou expressamente que o direito real de laje pode ser objeto de hipoteca, afirmação que seria relevante para garantir o acesso dos titulares desse direito a financiamentos, inclusive para eventual edificação futura sobre a laje. Aqui, o intérprete haverá que recorrer ao art. 1.473 do Código Civil em que o legislador elenca os bens que podem ser hipotecados, aplicando-se o inciso I (“os imóveis”) ao direito real de laje, seja porque tal direito deve, consoante a própria linguagem da MP 759/2016, deve corresponder a matrícula própria no RGI, seja porque o direito real de laje foi incluído no rol do art. 1.225 do Código Civil como direito real, de modo que se lhe aplica o art. 80, I, da codificação civil que atribui qualidade de bens imóveis aos “direitos reais sobre imóveis”. Tal esforço interpretativo, conquanto pareça simples, contrasta com a lógica seguida pelo legislador no art. 1.473 do Código Civil, que reserva incisos autônomos para o direito real de uso, a propriedade superficiária e o direito de uso especial para fins de moradia (incisos VIII, IX e X), de modo que melhor teria feito a MP se tivesse, na esteira das iniciativas que a antecederam, inserido novo inciso no referido dispositivo legal. Foi igualmente omissa a MP em relação à possibilidade de usucapião do direito de laje.
Outra questão de que não tratou a MP 759/2016 foi a possibilidade de incidência do direito real de laje quando a edificação subjacente esteja construída em imóvel público. Tal possibilidade harmoniza-se com os institutos mais recentes, como a legitimação de posse e outros, que vêm reconhecendo a legitimidade da posse sobre bens públicos, negando-lhe apenas o efeito aquisitivo da propriedade por usucapião (posse ad usucapionem) por força da vedação constitucional (CF, arts. 183, §3o, e 191, p.u.). O expresso reconhecimento dessa possibilidade no caso do direito de laje, conquanto, a rigor, desnecessário, seria importante para não suscitar riscos de exclusão do âmbito de aplicação do novel instituto de vasta parcela dos moradores de favelas em cidades como o Rio de Janeiro, onde é frequente a ocupação de encostas de morros. Daí a advertência de Marcos Alcino de Azevedo Torres no sentido de que a efetividade do direito de laje fica a depender da atribuição de propriedade em relação ao imóvel subjacente, desafio que ainda está longe de ser vencido entre nós.
A MP 759/2016 vem, aliás, animada pelo nítido propósito de alterar esse cenário, substituindo o modelo que estava em curso (Lei 11.977/2009, parcialmente revogada), calcado em uma demarcação urbanística de difícil implementação prática, por um modelo de titularização em massa, de implementação menos custosa e mais célere, mas de eficácia ainda controvertida (Maurício Jorge Pereira da Mota). A mudança parece, contudo, ter desconsiderado, como se vê da disciplina do direito de laje, alguns aspectos fundamentais da vida em comunidades e de toda a experiência acumulada pela doutrina especializada nas últimas décadas. Como adverte Alex Ferreira Magalhães, a regulação jurídica da vida nas favelas “resulta de permanente processo de articulac?a?o entre normas juri?dicas editadas pelo Estado e normas costumeiras elaboradas localmente, resultantes das pra?ticas juri?dicas institucionalizadas dos moradores de favelas.” (Direito da Favela no Contexto Pós-Programa Favela Bairro, tese de doutoramento IPPUR/UFRJ, 2010). Seus problemas não se resolvem com alterações legislativas abstratas, típicas do olhar discriminatório que, desconhecendo a realidade concreta, pretende solucionar questões dramáticas com passes de mágica ou “canetadas” normativas. A chegada de um verdadeiro Direito para as comunidades parece ainda à espera de uma abordagem normativa mais sensível à situação fática das favelas, por meio de leis que não se limitem a consagrar institutos jurídicos de reconhecido potencial, mas que o façam de modo compromissado com uma efetiva transformação da nossa realidade.
Fonte: Carta Forense.