Tratando do assunto em dois textos, o Dr. Vitor Frederico Kümpel, aborda o tema da alienação fiduciária, apontando as diferenças entre o instituto e a propriedade resolúvel, bem como trazendo esclarecimentos sobre os requisitos para a consolidação da propriedade.
Segue abaixo a íntegra da lição do Dr. Vitor.
O Dr. Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD – Escola Paulista de Direito.
Parte 1.
Iniciaremos hoje uma quinzena de discussões sobre a Alienação Fiduciária em Garantia, instrumento cada vez mais utilizado para aquisição e oneração de bens duráveis e de alto valor no contexto da expansão econômica brasileira, hoje responsável pelo desuso da hipoteca no mercado imobiliário. O intuito do artigo é chamar algumas questões a discussão, sempre com o escopo de buscar uma melhor operabilidade, em detrimento de deficiências sistêmicas.
A alienação fiduciária em garantia tem se mostrado um meio extremamente eficiente para o credor assegurar a recuperação do capital investido e não devolvido espontaneamente pelo devedor na data determinada, fruto da inoperabilidade dos demais meios de garantia notadamente a hipoteca e a anticrese no que toca a bens imóveis.
De gênese romana, o instituto é oriundo da antiga fidúcia cum amico, um contrato de confiança que possibilitava o acautelamento de bens no intuito de evitar riscos e proteger o devedor fiduciante de circunstâncias aleatórias, que poderiam ocasionar o perdimento de bens. O credor fiduciário (amigo) ficava responsável pela restituição dos bens em caso de perda, por exemplo, em uma guerra, por parte do tido devedor. Não havia negócio jurídico subjacente, o objetivo era a proteção contra penas severas, impostas pelo império romano.Posteriormente, essa modalidade se transformou na fidúciacontraída cum creditore pignoris iure, uma garantia real, pela qual o credor de uma obrigação preexistente se tornava proprietário de uma coisa do devedor, obrigando-se aquele, pelo pactum fiduciae, a restituí-la a este, após o pagamento da dívida1. Nesta oportunidade, nasce efetivamente o vínculo principal, o vínculo acessório e as figuras efetivas do credor e do devedor. A alienação fiduciária também está presente em países de common Law, correspondendo ao trust receipt, por meio do qual o devedor transfere fiduciariamente o domínio da coisa como garantia2.
Inicialmente, é fundamental deixar claro que a Alienação Fiduciária em Garantia é uma espécie do gênero propriedade fiduciária, e não uma propriedade resolúvel como muitos supõem, confundindo a natureza do instituto, incluindo o próprio legislador, tanto nos artigos 1.361 quanto do artigo 22 da lei 9.514/97.
Em ambos os diplomas legais, o legislador salienta que o devedor fiduciante, ao celebrar o negócio transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel do bem móvel ou imóvel. Desde já, é bom salientar que a efetiva transferência só ocorrerá com o inadimplemento da obrigação, chamada de consolidação, não se confundindo, portanto, de forma nenhuma com a propriedade resolúvel.
No Brasil, a Alienação Fiduciária em Garantia, foi introduzida no ordenamento pela Lei de Mercado de Capitais, 4.728 de 10/7/1965, que, no entanto, referiu-se ao instituto como um domínio resolúvel, iniciando então a confusão onomástica e técnica. Em 1993, com a Lei dos Fundos de Investimento Imobiliário, n. 8.668, legislador pareceu compreender a inadequação do tratamento como propriedade resolúvel, optando por denominá-lo “propriedade fiduciária”, conforme art. 7º da referida lei. Em 1997, pela lei de Financiamento Imobiliário 9.514, retoma-se o nomen juris “propriedade resolúvel”, ao regular a alienação fiduciária de coisa imóvel, tendo, paradoxalmente, a mesma lei facultado a constituição de um regime fiduciário à operação de securitização de recebíveis imobiliários.
No Código Civil de 2002, o legislador retoma novamente a ideia da propriedade fiduciária, diferenciando-a da propriedade resolúvel. Entretanto, seus artigos referem-se apenas à alienação fiduciária em garantia de bem móvel tratada na Lei 4.728/1965 e no decreto lei 911/69, parcialmente revogado (derrogado) pelo códex civil. Por fim em 2004, na lei 10.931, ao tratar da afetação patrimonial, o legislador esbarra novamente na mesma problemática, sem, contudo, resolvê-la. Aliás, este último diploma modifica o decreto 911, o Código Civil e a lei 9.514/97, tendo esta última sido ainda reformulada pela lei 11.481/07.
Para esclarecer o assunto, cabe distinguir os conceitos de propriedade resolúvel e propriedade fiduciária. Parte da doutrina entende que em ambas as figuras tem-se a limitação aos plenos poderes de propriedade (absoluto, exclusivo, aderente, perpétuo e limitado). Na propriedade resolúvel alguns autores entendem que a referida limitação decorre da própria autonomia privada, enquanto na propriedade fiduciária, decorre de imposição legal3.
Ainda sob este raciocínio, a propriedade resolúvel ocorre quando existente no título formal que originou o direito de propriedade, uma condição resolutiva (eventos futuros e incertos) ou um termo (eventos futuros e certos), cujas ocorrências implicam a extinção do domínio sobre o bem. Desse modo, o proprietário resolúvel age como proprietário legítimo para todos os fins, seja para a prática de atos de administração, seja para a disposição sobre a coisa até o momento de implemento da condição ou do advento do termo. A partir daí, resolvem-se os direitos reais concedidos durante a pendência, de modo que o bem em questão deve retornar ao proprietário anterior (diferido), em favor do qual se operou a resolução. Por outro lado, caducada a condição, o proprietário resolúvel se torna o legítimo proprietário do objeto, em função do desaparecimento da restrição sobre a propriedade. Cabe ressaltar que o proprietário diferido, durante a pendência da condição ou do termo, não é proprietário do bem, possuindo apenas a expectativa de direito. Implementada a condição ou o termo, o art. 1.359 do Código Civil faculta ao proprietário diferido a reivindicação da coisa em poder de quem quer que essa esteja.
Importante destacar, que no caso da propriedade resolúvel, é a autonomia da vontade que opõe a limitação ao direito de propriedade, de modo, a subtrair-lhe parte de sua finalidade econômica, destinando-a a outro fim prático que não o estipulado em lei.
Por outro lado, a propriedade fiduciária, embora limitada, não é por vontade das partes, mas sim por determinação legal. Nesse caso, há a celebração de um negócio jurídico que atribui ao bem ou ao conjunto de bens uma determinada finalidade específica. Segundo a classificação de Orlando Gomes, essa finalidade pode ser de garantia, de administração, ou de inversão. No caso da finalidade de administração, o bem é transferido para ser administrado por um terceiro e não pelo seu beneficiário, muitas vezes desprovido de capacidade ou competência; já no caso da inversão, certa soma de dinheiro é concedida ao fiduciário a fim de que a aplique, obrigando-se a pagar a renda estipulada, bem como à devolução do capital transferido.
Para simplificar um pouco mais a questão, na propriedade resolúvel, independentemente de sua origem tem-se a transmissão dominial do antigo titular para o proprietário resolúvel, podendo o titular reivindicante trazer de volta a coisa, uma vez operada a resolubilidade (art. 1.359 CC). Numa ideia mais simples é isso que se verifica na retrovenda. O proprietário aliena um bem ao proprietário resolúvel e pode reivindicar o bem no prazo máximo prorrogável por três anos, restituindo e reembolsando tudo o que pagou (art. 505).
Tal fenômeno não acontece de forma alguma na alienação fiduciária, pois não é propriedade resolúvel, não porque a lei ou a vontade estejam envolvidas, não é propriedade resolúvel porque ao celebrar o negócio o credor fiduciário não se torna proprietário do bem resolúvel e nem o devedor fiduciante se torna titular reivindicante. Ao estabelecer o negócio, o bem deixa de ser de titularidade do devedor, mas também não ingressa no patrimônio do credor. O bem fica afetado, ou seja, sem titular certo. Ocorre como se o bem tivesse sido abandonado ou renunciado, fica num limbo jurídico, fora do comercio, por arbítrio de qualquer das partes. O credor fiduciário, na vigência do contrato não pode usar fruir ou dispor do bem, tem um mero crédito abstrato e insuscetível de ser resgatado na vigência do contrato. Já o devedor fiduciante pode usar e fruir, mas não pode dispor sem a anuência do credor (art. 28 da lei 9.514). Obviamente, o devedor fiduciante é muito mais titular da coisa que o credor fiduciário, tem a posse direta o uso e a fruição. Já o credor como já dito não tem nada, a não ser aguardar a mora e o inadimplemento para ai sim consolidar a propriedade em si.
A propriedade, portanto, permanece no limbo até a ocorrência do pagamento ou quitação, ocasião em que o antigo titular (devedor fiduciante) retoma a integralidade de poderes (art. 25, parágrafos 1º e 2º) ou opera-se a mora e o inadimplemento com efetiva consolidação de domínio pelo credor ocasião em que passa a estar obrigado a recolher o ITBI e eventual laudêmio (art. 22, parágrafo 1º combinado com o art. 26 da lei 9.514/97).
Tem-se como objeto do presente artigo a propriedade fiduciária de garantia, dada pela Alienação fiduciária em garantia, tendente a substituir institutos tradicionais como o penhor e a hipoteca, que deixam a desejar no contexto da expansão do mercado econômico financeiro da atualidade.
Antigamente no Brasil, a inexistência da Alienação Fiduciária em garantia dificultava a retomada do bem no mercado, como já mencionado acima, por isso é uma eficiente ferramenta a favor do sistema de recuperação do imóvel, além de auxiliar na recolocação mais rápida do mesmo no mercado4. Assim, no caso da lei 9.514 de 1997, o objetivo claro e inequívoco do legislador foi o de facilitar e tornar mais segura a concessão de financiamentos para a compra e venda de imóveis, mormente diante dos inúmeros obstáculos vinculados à hipoteca, principal instrumento até então para o nascimento da garantia5.
A hipoteca é de execução lenta, ao sabor da delonga dos processos judiciais6, ademais nem sempre possui o privilégio de sobrepujar os demais credores, mesmo os trabalhistas e os fiscais, como garante a alienação fiduciária em caso de falência do devedor. Na hipoteca também não ocorre a transferência da propriedade do bem hipotecado ao credor, sendo que o devedor poderá inclusive hipotecá-la novamente, não obstante conste na matrícula imobiliária o registro da garantia hipotecária anterior. Esta última situação é bastante discutível no que concerne a alienação fiduciária em garantia. Desse modo, o instituto milenar da hipoteca acaba por perder a sua força diante da agilidade e eficiência da alienação fiduciária no contexto imobiliário. A súmula 308 do STJ enterrou a alienação fiduciária ao determinar que “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Com isso, as instituições financeiras perderam completamente o interesse na hipoteca e passaram a focar na alienação fiduciária. No caso dos outros institutos, o penhor dificulta as negociações mercantis ao exigir a tradição da coisa apenhada, enquanto a anticrese caiu em desuso, dada a complexidade das relações socioeconômicas modernas.
Na próxima quinzena, melhor trabalharemos os requisitos para a consolidação da propriedade fiduciária, entre outros consectários. Esperamos que tenha clareado a distinção entre os institutos da Propriedade Resolúvel e da Propriedade Fiduciária, tendo como espécie deste a Alienação Fiduciária, instrumento de garantia de extrema importância e utilidade para as relações econômicas atuais do país.
Parte 2.
Na quinzena anterior destacamos a alienação fiduciária como fenômeno distinto da propriedade resolúvel. O mote maior foi explicar que o credor fiduciário ao celebrar o negócio não se torna proprietário resolúvel do bem, muito menos o devedor fiduciante, titular reivindicante. Esclarecemos o fato de que ao estabelecer o negócio, o bem, embora deixe de ser de titularidade do devedor, não ingressa diretamente no patrimônio do credor, constituindo, dessa maneira, um patrimônio afetado, ou seja, sem titular certo, como se o bem tivesse sido abandonado ou renunciado, permanecendo em um “limbo jurídico”, fora do comércio, por arbítrio das partes. Arrematamos o assunto salientando ainda que a dita alienação fiduciária não se confunde, portanto, nem com propriedade resolúvel e nem com direito de garantia, sendo instituto sui generis no universo jurídico. Nesta semana, trabalharemos os requisitos para a consolidação da propriedade fiduciária, tópico de grande relevância no mercado imobiliário, notadamente no âmbito da habitação e da constituição de crédito, em que paira alta taxa de inadimplência, pelo excesso de garantismo às instituições financeiras, dentre outros consectários.
Na Alienação fiduciária em garantia, o adimplemento da obrigação contratual enseja a consolidação da propriedade nas mãos do devedor (art. 25, da lei 9.514). Já sob a hipótese de inadimplemento, consolidar-se-á nas mãos do credor fiduciário, concomitante ao cumprimento de determinados requisitos procedimentais (art. 26). Como já dito, na vigência do contrato o bem está afetado, não sendo de titularidade de qualquer das partes, aguardando como mencionado a obrigatória incidência do art. 25 ou 26, tanto isso é verdade que se o devedor fiduciante quiser, neste período em que as prestações estão sendo pagas, alienar o bem, necessitará obrigatoriamente de expressa anuência do credor para ceder seus direitos sobre a coisa (art. 29).
No caso do adimplemento, o credor fiduciário disponibilizará o termo de quitação ao devedor fiduciante para que seja averbada a extinção da propriedade fiduciária, cancelando seu registro. Não se faz necessária a entrega do termo ao devedor, basta deixá-lo à disposição do mesmo. Caso o credor não cumpra com sua obrigação de disponibilizar os termos de quitação, sofrerá a sanção do art. 25, parágrafo 1º, com incidência de multa de 0,5% ao mês ou fração, ambos sobre o valor do contrato. A lei é atécnica e confusa com relação ao vocábulo fração, embora interpretemos que esta corresponderia à proporcionalidade dos dias em atraso, não excluindo a possibilidade, em caso de tutela jurisdicional, do juiz estipular valor maior1. Essa é uma obrigação de fazer do fiduciário, passível de ação própria a compeli-lo e responsabilizá-lo por perdas e danos, além de multa.
Cabe lembrar, porém, que o requisito fundamental para a retomada da propriedade é o pagamento da dívida e não o fornecimento da quitação pelo credor. No caso do retardamento da obrigação legal de outorgar a quitação, a sentença judicial apenas declarará a dívida e determinará ao oficial de Registro de Imóveis o cancelamento da propriedade registrada em nome do credor, condenando-o ao pagamento da multa a ser revertida em benefício do devedor fiduciante.
No que tange ao inadimplemento, o primeiro detalhe a ser observado é o prazo de carência fixado no contrato. Por óbvio, quanto maior for o prazo de carência concedido pelo credor, mais difícil ficará para o devedor quitá-lo. Caso, por exemplo, sendo concedido um prazo de 90 dias, somente após o termo final é possível ao credor comparecer no ofício de registro de imóveis e requerer a intimação para fins de purgação da mora, que sempre tem que ocorrer de forma integral.
Logo, para bens imóveis a lei 9.514/97 estabelece que purgada a mora no Registro de Imóveis, o contrato de alienação fiduciária convalescerá e o oficial do Registro de Imóveis, nos três dias seguintes à purgação da mora, deverá entregar ao fiduciário as importâncias recebidas, deduzidas obviamente as despesas de cobrança e intimação.
No caso de inadimplemento, compete ao oficial do Registro de Imóveis escolher a forma de intimação do devedor, que poderá se dar: por ofício de títulos e documentos, por preposto seu ou por correio, com AR. O oficial do RI tem que ser muito diligente, pois sua certidão é o último momento de defesa antes de eventual ação de reintegração de posse e caso seja mal feita a referida intimação poderá ensejar prejuízos desmedidos ao devedor fiduciante.
Conforme artigo 26 da lei 9.514/97 de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, o devedor deverá ser intimado pessoalmente, nas formas acima mencionadas, por edital caso não seja encontrado, por meio do oficial do Registro de Imóveis, para o adimplemento em quinze dias das prestações vencidas e vincendas até a data do pagamento. Observe-se que não existe intimação por hora certa. Em caso de pagamento, serão imputados os juros convencionados, a multa, em caso de cláusula penal, bem como os tributos, os condomínios, as despesas de intimação e de cobrança e mais o período de carência contratualmente estabelecido pelas partes.
Com relação a este tópico as Normas de Serviço Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no capítulo XX, item 252, estabelecem a necessidade de intimação individual de todos os devedores ou cessionários, incluindo seus cônjuges. Na prática o contrato tem estabelecido uma cláusula mandato possibilitando a um dos cônjuges representar o outro, o que no caso é flagrantemente arbitrário e ilegal.
Também é possível, conforme já dito, que a intimação seja delegada, pelo oficial do Registro de Imóveis, ao oficial de Registro de Títulos e Documentos, contudo trata-se de iniciativa cabível, única e exclusivamente, ao registrador imobiliário e não ao credor fiduciário. Depois de procurado o devedor e não encontrado, o oficial de Registro de Imóveis providenciará a publicação dos editais, durante três dias em pelo menos um dos jornais de maior circulação local ou da comarca próxima, em caso da inexistência de imprensa diária.
Purgada a mora pelo fiador, junto ao oficial de Registro de Imóveis, o contrato de alienação fiduciária continuará em pleno vigor e o fiador sub-rogar-se-á nos direitos do credor fiduciário. Caso contrário, se a dívida não for paga dentro de 15 dias, o oficial de Registro de Imóveis providenciará, mediante requerimento com prova do pagamento do imposto de transmissão inter vivos, o registro de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário. A certidão do oficial do registro de imóveis, neste caso, é ato extremamente sério, pois ensejará a retomada forçada do bem, sem qualquer intervenção judicial até a propositura da competente ação de reintegração de posse.
Em sequência, providenciará o fiduciário, no prazo de 30 dias, a partir do registro da consolidação e das intimações, o leilão público para a venda do imóvel. Aos leilões a lei não exige a necessidade de editais ou de intimação do fiduciante, que já deveria ter sido alertado, por ocasião de sua intimação, bem como, por ocasião da assinatura do contrato, pelos princípios da publicidade da relação consumo, normalmente presente. Poderão ser realizados, ao todo, até dois leilões. No primeiro leilão será oferecido valor, que pode suplantar ao do imóvel, constante no contrato devidamente corrigido, conforme índice estipulado. Entretanto, o que acaba por ocorrer na prática é uma supervalorização do valor imóvel, com valor em leilão acima do de mercado, obstáculo evidente à aquisição do imóvel em uma primeira praça. Neste primeiro leilão, o credor seria obrigado a devolver aquilo que foi pago pelo devedor, para não gerar bis in idem.
Nesse contexto, como já esperado, em caso de não licitantes, haverá um segundo leilão em 15 dias, em que o imóvel será vendido pelo maior lance superior à dívida, contabilizando na mesma obviamente os juros, com correção e multa, o valor de prêmios de seguros, encargos, tributos, condomínios, além das despesas com o referido ato.
O valor arrecadado superior às despesas caberá ao credor (antigo devedor), o que dificilmente ocorre na prática. Porém em segunda praça o imóvel é adquirido pelo valor da dívida, logo, embora a lei exija a restituição do valor excedente ao credor, acaba que ele nunca é restituído, chegando em grande parte das vezes, constituir até um confisco ao fiduciante que havia oferecido em garantia um bem de valor muito superior ao montante da dívida.
Nessa situação específica se faz necessário verificar a existência ou não de ações judiciais, e se o credor foi realmente ressarcido, evitando que o fiduciário confisque o imóvel do fiduciante. Caso não ressarcido, como dito, além de pagar a dívida o devedor estaria na realidade sendo confiscado, vedando o sistema o enriquecimento sem causa.
Caso, no segundo leilão o valor da arrematação seja inferior ao valor total da dívida, esta se dará por extinta, cabendo ao credor do mesmo modo a entrega do termo de quitação ao devedor (art.27, § 5º, lei 9.514). O mesmo ocorrerá na ausência de arrematantes, hipótese em que a propriedade se consolidará definitivamente, desprovida de qualquer limitação, nas mãos do credor fiduciário.
Considerando este contexto, a arrematação se tornou um “ponto de estrangulamento para a fluidez do procedimento”2. Como já mencionado, dificilmente ocorre a arrematação em primeira praça, vez que os interessados optarão por esperar a segunda arrematação, quando poderão oferecer lanços inferiores, hipótese vedada no primeiro Leilão. Por fim, esta consecução de eventos acaba por provocar maior custo e demora, em prejuízo de ambos os envolvidos na arrematação.
Como uma possível solução para o problema da arrematação, o emérito professor Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes propõe uma alteração legislativa que valorize a celeridade e a economia processual, a partir da configuração do pacto de melhor comprador, no direito atual, e da verificação das relações existentes entre a in diem addictio e a auctio pública no direito Romano3. O “pacto de melhor comprador” é um instituto de criação romana, que foi utilizado no Brasil como cláusula especial ao contrato de compra e venda, impondo cláusula resolutiva ou suspensiva com a condição de que não surja, em um determinado prazo, outro comprador que ofereça proposta mais vantajosa. O instituto, entretanto, manteve-se durante muito tempo em desuso no país, durante praticamente os 80 anos de vigência do Código Civil de 1916, por isso foi muito pouco estudado no direito moderno. Nesse contexto requer-se socorro ao estudo de seu equivalente no Direito Romano, isto é, à in diem addictio, uma condição sujeita à adjudicação final em vendas públicas. O caminho do estudo proposto é valido, na medida em que se coloca a favor da celeridade e eficiência do sistema como um todo, tendo por objetivo o fim do estrangulamento do atual sistema.
Na prática, o que tem acontecido muito é uma dação em pagamento do bem do devedor ao credor ou, em muito casos, a adjudicação do bem pelo credor, já que o sistema é dinâmico e rico em detalhes.
Por fim, nos termos do art. 30 da lei 9.514/1997, considerando que tanto o credor fiduciário, seu sucessor ou cessionário dos direitos decorrentes da alienação fiduciária, quanto o adquirente no público leilão, poderão se valer de ação de reintegração de posse, com possibilidade de liminar para desocupação, em sessenta dias. Segundo o art. 37–A da lei 9.514/1997 o direito de o fiduciário ingressar com ação de reintegração de posse se dá a partir do dia da alienação no leilão público, termo inicial legal para contagem do aluguel-pena imposto ao devedor que não restituir a posse4.
Entretanto, a ação de reintegração de posse pode anteceder a realização do leilão, tendo como pressuposto único a consolidação plena da propriedade na pessoa do credor fiduciário. Comprovada a consolidação, a problemática se insere na questão do imóvel estar locado, pois admitida a aplicação da Lei do Inquilinato, a locação deverá ser denunciada no prazo de trinta dias para a desocupação, tendo em vista a relatividade dos efeitos dos contratos. Tudo isso sem prejuízo da hipótese do fiduciário ter anuído, por escrito, com a locação, o que é muito raro na prática5. Em todo o caso, nesta hipótese, a denúncia se dará em 90 dias, a partir da data de consolidação da propriedade ao fiduciário, cláusula esta que deverá constar expressamente no contrato de alienação fiduciária.
O locatário não possui qualquer direito de preferência para aquisição do imóvel no leilão extrajudicial, como consta no parágrafo único do art. 32, lei 8.245/1991, sem prejuízo dos contratos anteriores a 1º de outubro de 2001, aos quais é válido o direito de preferência no Leilão.
Outro conflito apresenta-se na utilização pelo fiduciário, que teve a propriedade consolidada em seu nome, da ação de reintegração de posse, regramento previsto pelo art. 30 da lei 9.514 ou da ação de despejo, aplicável em virtude do art. 8º da lei 8.245/1991. Marcelo Terra entende que a melhor ação seria a de reintegração de posse, dada a expressa e específica disposição legal, ainda que diversa da lei do Inquilinato, para a denúncia pelo adquirente. Ademais a lei 9.514/1997 prevê prazos diferentes, bem como sistemática diversa à lei do inquilinato, como ressalta L. A. SCAVONE acresce-se ainda o fato de que a alienação fiduciária é pública, não podendo o locatário ignorar as consequências da consolidação nas mãos do fiduciário e do públicio leilão ante o registro imobiliário.A única exceção se daria na hipótese da alienação fiduciária suceder o contrato de locação, com permanência do locatário do fiduciante após a constituição da propriedade fiduciária, tendo em vista ainda o fato do art. 32 da lei 8.245/1991 não conceder ao locatário o direito de preferência, não exigindo sua comunicação ou anuência.
De fato, a verificação das vantagens da aplicação da alienação fiduciária deve ser analisada realisticamente, em cada caso concreto. As possibilidades de vantagem, especialmente no mercado imobiliário, são potencialmente convincentes, a principal, sem dúvida, é a rapidez de recuperação do bem pelo credor-fiduciário, quando do inadimplemento do devedor-fiduciante. Os procedimentos de recuperação do crédito fiduciário, nos casos de inadimplemento do fiduciante, são passsíveis de realização extrajudicial, de forma rápida, simples e sem ferir qualquer preceito constitucional. Tudo em benefício da desburocratização do sistema de recuperação de créditos nacional, que se mostra ultrapassado, carecendo de evolução aos moldes de um mercado ativo, global e atrativo aos investidores internos e externos6.
A matéria de toda sorte é bastante melindrosa e controvertida, sendo que a referida lei e o sistema brasileiro blindaram nosso mercado da crise de 2008. É inegável, porém, que as considerações sobre os princípios constitucionais ainda não chegaram a bom termo: quer pra estimular o crédito, quer na proteção das garantias fundamentais e sociais da pessoa humana.