Alienação Fiduciária de bem imóvel. Apontamentos críticos sobre a proposta de alteração da Lei de Nº 9.514/1977 tentada pelas entidades representativas das instituições financeiras
Por Mauro Antônio Rocha
1. Com a intenção de estimular o mercado de crédito imobiliário, considerado fundamental para a retomada econômica do país e, ao mesmo tempo, aplacar o temor de desfiguração do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel pelo Poder Judiciário, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão solicitou de entidades representativas das instituições de crédito e financiamento imobiliário subsídios e propostas com alterações julgadas necessárias e imprescindíveis ao aperfeiçoamento da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, especialmente quanto aos procedimentos legais considerados prejudiciais à eficácia dessa garantia real e, consequentemente, aos interesses do mercado financeiro.
Em resposta, aquelas entidades encaminharam ao Governo Federal, no início de 2017, projeto legislativo – que se encontra em fase de análise para ser adotado em caráter de urgência por meio de medida provisória – modificando a redação original ou vigente de quatro dos doze artigos do capítulo específico da alienação fiduciária e outros dois artigos das disposições gerais e finais da referida lei.
A leitura atenta do referido projeto evidencia que a proposta ficou limitada a questões pontuais, episódicas e restritas aos contratos bancários em geral, consolidando pautas requentadas e conhecidas, sem abraçar as reivindicações de setores não financeiros e sem abarcar a necessidade de conformação das características legais do negócio fiduciário às condições específicas e próprias das novas modalidades negociais atraídas pela simplicidade dos trâmites e rapidez prometida.
Disso decorre o primeiro e principal defeito do projeto legislativo apresentado. Concebida originalmente para aplicação exclusiva no âmbito do mercado de crédito imobiliário, com mecanismos apropriados para as operações de compra e venda de imóvel agregadas ao mútuo com garantia real, o campo de contratação da alienação fiduciária de coisa imóvel, assumida como garantia ideal para as operações comerciais e de capitais, foi ampliado e generalizado por alterações legais introduzidas pelo Código Civil vigente a partir de 2002 e pela Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004. No entanto, sem as correspondentes adaptações, nas transações mais complexas as partes são obrigados a forjar condições e procedimentos extravagantes e inexistentes no texto legal, fragilizando a segurança jurídica e compelindo o registrador imobiliário a desqualificar o título – em observância restrita ao princípio da legalidade – e denegar seu registro.
Perde-se, dessa forma, rara oportunidade para envolver todos os setores interessados em aprofundar os debates, de forma a sistematizar e consolidar a disciplina jurídica do instituto, hoje dispersa em normas diversas, viabilizando os arranjos negociais em geral.
2. Não bastasse isso, a análise dos ajustes denota a fragilidade e inconveniência de parte das proposições, além de revelar sua inutilidade com relação ao objetivo de evitar que controvérsias resultantes da alienação fiduciária sejam submetidas à apreciação do Poder Judiciário. Ao contrário, algumas delas potencializam o contencioso, expondo o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia ao crivo e às interpretações judiciais.
Sem tencionar discutir o mérito da modificação aventada é pasmante, por exemplo, que o parágrafo único inserido no artigo 30 da lei sugira excluir da apreciação judicial ações que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou requisitos procedimentais de cobrança e leilão, de forma a não obstar a reintegração de posse pelo credor fiduciário, relegando os interesses do devedor fiduciário à eventual pretensão indenizatória.
Não se deve esquecer que o pretexto primário que justifica a execução extrajudicial coincide com o respeito aos princípios constitucionais, resguardando o acesso do devedor à justiça, ao devido processo legal, ao contraditório e ampla defesa, entre outros direitos, mantido o monopólio da jurisdição pelo Estado, seja pelo efeito rescindente da sentença na ação de imissão de posse, seja por ação direta contra o credor ou agente fiduciário.[2] Assim, é crível que essa modificação enfrentará contestação acerca de sua própria constitucionalidade – face ao inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal – e ensejará máxima judiciarização da matéria.
De outra parte, a segregação das operações de financiamento habitacional de outras transações realizadas com garantia fiduciária, presente nos arts. 26A e 27, parágrafo 6ºA do projeto legislativo, com o intuito de diferenciar procedimentos em relação à quitação da dívida após a consolidação da propriedade esbarra, também, em equívocos técnicos que limitam a aplicação das normas.
Ao teor do art. 26A, somente aos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia de financiamento habitacional, vale dizer, de mútuo para aquisição da moradia própria (assim compreendida aquela que é adquirida para residência e domicílio do próprio mutuário) seriam aplicados os dispositivos legais que determinam a quitação da dívida em decorrência da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.
Contrário senso, por conta do § 6ºA, do art. 27, tanto a proibição de venda do imóvel por valor inferior à dívida consolidada no segundo leilão, como, também, a quitação da dívida, ainda que consolidada a propriedade em nome do fiduciário, restariam afastadas de qualquer outra transação comercial ou de crédito com garantia imobiliária.
No entanto, o referido § 6ºA se refere – explicita e exclusivamente – às operações de crédito em geral, ficando sua aplicação restrita às operações financeiras realizadas por instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil e deixando de fora todas as demais operações negociais – comerciais e de capital. Reforça esse entendimento o disposto na justificação do parágrafo onde há referência direta aos financiamentos não-habitacionais em geral.
Da mesma forma, projeta-se alterar a redação do artigo 24 da lei, que estabelece os requisitos do contrato, dentre eles – no item VI – a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão para estabelecer que, caso o valor convencionado pelas partes seja inferior ao valor da avaliação fixado pelo órgão municipal competente para efeito de pagamento do imposto de transmissão inter vivos, este será o valor mínimo para oferta do imóvel no primeiro leilão.
De fato, determina a norma legal vigente que, para efeito de venda em leilão, as partes indicarão o valor do imóvel – a ser obtido por meio de avaliação técnica de preços; decorrer da pretensão do fiduciante estipulada para venda, ou resultar de cálculo descuidado e destituído de parâmetros técnicos e que, ainda que constitua elemento essencial do contrato, representa informação estática e insuficiente para precisar o valor mínimo de venda do imóvel em leilão público.
É por isso, aliás, que a lei requer, também, a definição de critérios para a revisão do valor do imóvel. Assim, na lição de Chalhub[3], para efeito de venda em leilão público, no caso de inadimplemento do devedor-fiduciante, indicar-se-á no contrato o valor do imóvel e os critérios para sua revisão (observe-se que o dispositivo refere-se a critérios de revisão do valor, e não de reajuste).
No entanto, por acomodação das partes e descuido na elaboração dos instrumentos contratuais os critérios de revisão foram substituídos por critérios de reajuste de valor, mediante a prescrição de índices de correção e atualização monetária. Por isso, a ideia de estipular uma alternativa de aferição de valor parece interessante e tem sido defendida por alguns autores, porém, o aproveitamento do valor venal ou de referência para a determinação do valor do imóvel é equivocada e destituída de qualquer resultado prático. Fosse o caso, a lei teria elegido esse critério, proporcionando a “revisão” automática do valor do imóvel.
Demais disso, beira a raia do absurdo pretender estabelecer – em lei federal e de alcance nacional – como critério alternativo de aferição de valor do imóvel o valor venal ou de referência, estipulados em legislação municipal heterogênea – elaborada com métodos e fundamentos diversos – como base imponível para a cobrança de tributos por mais de 5.000 diferentes municípios.
Também ao artigo 26, propõe-se a inserção no texto legal regulamentando a intimação por hora certa. Essa modalidade de intimação – inexistente na Lei nº 9.514/1997 – foi introduzida no procedimento através do Provimento nº 33/2014, da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para atender pleito da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança – ABECIP e foi acolhida pelos Tribunais de Justiça de outros estados da Federação, sobrepondo-se à notificação judicial, considerada até então o caminho regular para a consecução da intimação nos casos de suspeita de ocultação do fiduciante.
Cabe apontar e criticar que, assim como no provimento administrativo original, não há no texto proposto medida de equivalência com a obrigação expressa no processo jurisdicional, nos termos do art. 72, II do Código de Processo Civil, que exige a nomeação de curador especial ao réu intimado por hora certa ou edital, o que abrirá um novo franco que, evidentemente, incrementará o apelo à solução judicial.
É inegável que a maior parte das modificações propostas objetiva tornar ainda mais severo o procedimento da execução extrajudicial, além de simplificar as formalidades de intimação e consolidação da propriedade, sempre em benefício dos credores fiduciários, com contrapartida pífia aos devedores, consubstanciada no item II do art. 26A e nos § 6ºB e 6ºC do art. 27.
Tanto assim que o item II do art. 26A assegura ao fiduciante e devedor de mútuo para a aquisição da moradia própria (financiamento habitacional) o direito de pagar as parcelas vencidas mais encargos até a data da averbação da consolidação da propriedade, o que em nada inova o procedimento padrão já admitido pelas instituições financeiras.
Por sua vez, o § 6ºB do art. 27 garante direito de preferência ao devedor para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida e encargos, no período compreendido entre a averbação da consolidação da propriedade no patrimônio do credor e até a data da realização do segundo leilão. Entretanto, da justificação da proposta decorre que é assegurado ao devedor o direito de preferência à aquisição do imóvel no segundo leilão pelo valor do saldo devedor.
Os textos são incongruentes e não se prestam a esclarecer a real intenção da modificação proposta.
A redação deficiente e deficitária do referido parágrafo precisa ser apurada para esclarecer pelos menos três pontos de extrema importância para sua compreensão: (a) o termo final desse “direito de preferência” é a data da realização do segundo leilão ou o segundo leilão realizado – e neste caso, se a primazia prevaleceria sobre o lance válido oferecido no primeiro leilão; (b) se o direito deve ser exercido – somente pelo devedor – a qualquer momento no período após a averbação da consolidação da propriedade no patrimônio do credor e até a data da realização do segundo leilão não se vislumbra concorrência e, portanto, não configura a preferência e sim de um direito de aquisição; (c) somente se caracterizará a preferência se o exercício desse direito puder ser exercido nos leilões públicos e – inclusive – em face de eventual arrematante com lance superior ao dívida.
Finalmente, o § 6ºC do art. 27 é absolutamente inútil por ser descabida a exigência de comunicação das datas de realização dos leilões públicos ao anterior fiduciante, uma vez que os contratos – tanto o principal quanto o acessório de garantia fiduciária – deixam de existir por força da consolidação da propriedade em nome do credor, remanescendo apenas o direito obrigacional de prestação de contas, além de propenso a demandas judiciais pela dificuldade de proceder à comunicação válida, bem como de comprovar seu efetivo recebimento pelos devedores ou fiduciantes.
É, também, inapropriado visto que a exigência de comunicação decorre de jurisprudência consolidada dos tribunais superiores no sentido da necessidade de intimação pessoal do devedor acerca da data de realização do leilão extrajudicial[4], por conta da aplicação subsidiária dos artigos 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70/1966 aos financiamentos imobiliários contratados no âmbito do SFI e o dispositivo legal de fundo (art. 39, II da Lei nº 9.514/1997) é objeto da proposta de alteração legislativa, exatamente para explicitar que os dispositivos do Decreto-Lei nº 70/1966 somente se aplicam – nas operações de financiamento imobiliário abrangidas pela Lei nº 9.514/1997 – aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca, tornando despiciendo o parágrafo aqui discutido.
3. Diante do exposto, com o propósito de contribuir para o aprimoramento do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, aproveitamento pleno e com segurança jurídica, apontamos a necessidade de revisão do projeto legislativo apresentado de forma a evitar a judiciarização dos procedimentos e da execução extrajudicial que o distingue.
[1] O autor é advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial. Professor, palestrante e Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal – CEF.
[2] STF. Recurso Extraordinário 627.106 PR
[3] Chalhub, Melhin Namen. Negócio Fiduciário. 4.ed. – Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2009, p. 233.
[4] REsp nº 1.447.687/DF, 3ª Turma, Relator Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 21.8.2014.
Fonte: IRegistradores