Caros,
hoje postamos comentários sobre Alienação Fiduciária feitos pelo Dr. Renato Darcy de Almeida:
Ementa
Na alienação fiduciária, o devedor transfere ao credor a propriedade de imóvel como garantia de pagamento do preço de aquisição do mesmo imóvel (art. 22 da Lei n.º 9.5.14/97 combinado com o Capítulo IX do Título III do Código Civil);
Não há restrição quanto aos tipos de imóveis que podem ser objeto de alienação fiduciária, sendo válida a adoção do instituto na venda de lotes;
Na alienação fiduciária, uma vez não paga a dívida, o credor pode promover, judicial ou extrajudicialmente, a venda do imóvel, aplicando o preço recebido no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, com entrega ao devedor de eventual saldo;
Embora haja questionamentos, a venda extrajudicial não viola o art. 5º, incisos XXXV e LIV, da Constituição Federal, porque o Poder Judiciário pode controlar a posteriori a validade dos atos praticados. Precedente jurisprudencial;
A alienação fiduciária não viola o art. 53 do Código do Consumidor, que proíbe cláusula que estabeleça a perda, em benefício do credor, de todas as prestações pagas;
Em caso de inadimplência do devedor e da venda judicial ou extrajudicial do imóvel, eventual saldo apurado, depois do pagamento da dívida e das despesas de cobrança, deve ser entregue ao devedor. Inexistência de simples perda total das prestações;
A alienação fiduciária tem sido utilizada como mera opção dos promotores de loteamento que pode ser por eles exercida em compromissos de compra e venda. O promitente vendedor reserva para si a faculdade de antecipar a outorga da venda e compra, com alienação fiduciária do lote para garantia do pagamento do preço;
As razões que têm levado os loteadores a não adotarem o instituto;
O compromisso de compra e venda do lote como solução adequada;
O risco na adoção do compromisso de compra e venda: dever de indenização de benfeitorias necessárias ou úteis (art. 34 da Lei de Parcelamento do Solo). Proposta para superá-lo.
Parecer
O Instituto da alienação fiduciária foi introduzido pela Lei nº 4728, de 14.07.1965, em seu Art. 66. Este dispositivo foi posteriormente modificado pelo Decreto-lei nº 911, de 1º.10.1969, que alterou a redação do Art. 66 daquela lei e estabeleceu normas de processo sobre alienação fiduciária.
O novo Código Civil destinou à propriedade fiduciária o Capítulo IX do Título III, estabelecendo requisitos mínimos para a validade dos contratos com constituição da garantia fiduciária, através dos artigos 1361 a 1368, 1421 a 1426 e 1435 a 1436, em especial.
Em sua bem articulada monografia “A alienação fiduciária imobiliária”, Marcio Antonio Alves, focalizando o tratamento do Instituto no novo Código Civil, define-o, na lição do mestre Washington de Barros Monteiro, como “a propriedade resolúvel de coisa infungível, que o devedor transfere ao credor” e comenta, com precisão, as definições introduzidas para a extinção da dívida, da obrigatoriedade da venda do bem e entrega do saldo ao fiduciante, da nulidade de cláusula que autorize ao proprietário permanecer com o bem, da possibilidade da sub-rogação nos créditos e na propriedade fiduciária, além da instituição da arbitragem, como meio de solucionar os conflitos decorrentes da alienação fiduciária imobiliária.
A Lei 9.514/97, Art. 22, introduzindo a alienação fiduciária em garantia da propriedade imóvel, permitiu que esta se formalizasse por instrumento particular, com força de escritura pública, quando o destinatário final da operação seja pessoa física (Art. 38).
Ainda no regime do Decreto-lei nº 911/69, discutia-se se entidades não financeiras poderiam contratar a alienação fiduciária de bens, dúvida que deixou de existir com o texto explícito da mesma Lei 9.514/97.
Decorre desta lei que para os imóveis alienáveis fiduciariamente em garantia inexiste limitação legal quanto ao seu tipo, podendo ser residencial, não residencial, comercial ou misto, urbano ou rural, enfitêutico ou aforado.
Marcelo Terra, em livro de rara didática (Alienação Fiduciária de Imóveis em Garantia), lembrou as modalidades de formalização jurídica da compra e venda do imóvel a prazo, a saber:
a) | compromisso de compra e venda com a transferência do domínio ao comprador somente após o pagamento integral do preço; |
b) | venda e compra com pacto adjecto de hipoteca, em que o pagamento do saldo é garantido pela hipoteca do próprio imóvel vendido ou de outro imóvel; |
c) | venda e compra com pacto comissório, com a transferência imediata da propriedade ao adquirente, mas subordinada à condição resolutiva de efetivo pagamento; |
d) | venda e compra com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia. |
É de se lembrar que tanto a Lei de Incorporações (4.591/64) quanto a Lei de Estímulo à Construção Civil (4864/65), permitiram que o contrato de compromisso de compra e venda estipulasse a realização de leilões extrajudiciais, enquanto que a Lei de Parcelamento do Solo (6.766/79) igualmente contempla a exclusão do adquirente inadimplente através do serviço de Registro de Imóveis, o que veio a fazer a Lei 9.541/97, sob comento, quando criou o Sistema de Financiamento Imobiliário, adotando, por força do seu Artigo 17, inciso IV, a alienação fiduciária da coisa imóvel.
Visto que legítima a adoção da alienação fiduciária na venda dos lotes de um loteamento, quais os óbices para que essa garantia seja adotada em maior escala nos loteamentos, na prática dos agentes do desenvolvimento imobiliário?
Surgiram inicialmente questionamentos sobre a constitucionalidade do leilão extrajudicial, sob os fundamentos do Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal (“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”) e do Art. 5º, inciso LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens, sem o devido processo legal”). No entanto, consoante decisões já comentadas nesta casa, há hoje manifestações ponderáveis pela legitimidade do leilão extrajudicial, já que a intervenção do Judiciário fica sempre assegurada “a posteriori”.
Persistem ainda questionamentos fundados no Código de Defesa do Consumidor, com base principalmente no que dispõe o Art. 53 daquele diploma:
“Art. 53 – Nos contratos de compra e venda de imóveis mediante o pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleiteiem a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”. |
No entanto, é certo que o contrato que institui a alienação fiduciária em garantia, não prescreve a perda total ou mesmo parcial das quantias pagas, já que, se do leilão sobejar qualquer quantia, a lei impõe a restituição integral do excesso em favor do devedor.
Nesse sentido, uma antiga decisão do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, já considerava: “o fiduciante não faz jus à restituição das parcelas pagas, apesar da previsão do Código de Defesa do Consumidor, porque a alienação fiduciária é um contrato com peculiaridades próprias, cuja legislação específica prevê a entrega do saldo apurado na venda da coisa”.
Em recente matéria publicada no “Jornal o Estado de São Paulo”, edição de 04.06.2006, a advogada Zilda Tavares, mestra em Direitos Difusos e Coletivos, dá-nos conta de que ainda não está assentada a posição do Judiciário face à perda da moradia por compradores inadimplentes em contratos amarrados á alienação fiduciária. Cita a advogada quatro questões de seu acompanhamento já decididas em primeira instância, duas com decisões favoráveis aos mutuários e duas aos agentes financeiros. A Dra. Zilda, membro da Sub-Comissão do Direito do Consumidor da OAB/SP, em seu livro “Código de Defesa do Consumidor e a alienação fiduciária” (Editora Método, 2005), discutindo os diplomas aplicáveis, sustenta com elegância que o ser humano deve ser entendido, não apenas como o homo economicus, mas, principalmente, como o ser social, por isso, devendo prevalecer, na sua opinião, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, em nome da “vital proteção devida ao cidadão do seu direito à moradia”.
Despiciente, nesta breve coletânea, a discussão da autonomia das leis, cumpre-me, em verdade, não obstante a falta de dados jurisprudenciais mais completos e de informações mais amplas do mercado imobiliário, abordar o comportamento dos empreendedores quanto à inserção da alienação fiduciária em garantia nos contratos de venda de lotes.
Ao que sabemos, os promotores de loteamentos têm se limitado a inserir em seus instrumentos de venda a garantia da alienação fiduciária como mera opção alternativa a ser exercida pelo promitente vendedor ao longo da vigência do contrato. Vale dizer, o promitente vendedor reserva para si a faculdade de antecipar a qualquer tempo a outorga da venda e compra ao compromissário comprador e deste receber em seu proveito ou da entidade financiadora, a outorga da alienação fiduciária.
E assim o fazem meramente quando têm em mira a negociação futura dos recebíveis.
Procuramos indagar das razões dos loteadores de não se prevalecerem da alienação fiduciária como garantia. Ao que parece, elas residem, a par da pendência de questionamentos judiciais, nos aspectos práticos da comercialização.
A primeira destas razões, talvez a mais importante, é a de que essa garantia somente assegura o cumprimento da obrigação pecuniária (obrigação de dar), não abrangendo outras obrigações (de fazer ou de não fazer).
Ora, todos sabemos que os contratos de promessa de venda e compra de um lote, a par da obrigação de pagamento do saldo do preço, invariavelmente contemplam obrigações não pecuniárias para o compromissário, dentre outras, as relativas à observância de restrições edilícias, submissão ao regulamento do loteamento, participação em uma ou mais entidades associativas da coletividade, todas elas sob a cominação da rescisão contratual se descumpridas pelo compromissário, o que, no entanto, o leilão extrajudicial não socorre.
Dessa forma, a cláusula de alienação fiduciária e, conseqüente leilão extrajudicial, estariam garantindo apenas parte das obrigações assumidas pelo compromissário – o pagamento do saldo do preço – que conquanto a principal, não alcançam o cumprimento das demais aqui exemplificadas, obrigações que nos empreendimentos de alto padrão, principalmente, poderão ser tão importantes quanto o recebimento do saldo do preço.
Como segunda razão, é de se lembrar que a instituição da garantia fiduciária impõe ao comprador, já na celebração da aquisição, o recolhimento do ITBI, já que esta transmissão do domínio pelo vendedor é indispensável para que o comprador (fiduciante) promova a alienação fiduciária em favor do vendedor (fiduciário).
Nesta primeira transmissão torna-se devido o ITBI e não há como confundir a isenção expressa do Art. 1º da Lei Municipal 11.154/91 (São Paulo), como aplicável à segunda alienação do fiduciante para o fiduciário, esta sim, beneficiária da isenção que se é de inferir do Art. 3º, inciso III, da lei citada, já que constitui transmissão em garantia.
Além do óbice representado pela questão não de todo resolvida pelos nossos tribunais, quanto à aplicabilidade do Art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, estas duas ordens de inconvenientes parecem-nos preponderantes para justificar a relutância dos empreendedores em adotar a alienação fiduciária em garantia para a comercialização dos loteamentos.
Preferem eles a maior simplicidade do instrumento que Marcelo Terra enaltece como o “o velho e bom compromisso de compra e venda” que, afinal, constitui procedimento rápido, eficaz e econômico para a exclusão do compromissário inadimplente e também se realiza e conclui dentro do serviço de registro de imóveis, simplesmente.
O compromisso de compra e venda vem perfeitamente disciplinado nos artigos que compõem o Capítulo VII da Lei 6766, em especial os de números 25, 26, 32 a 36 e 45/46, sob a restrição superveniente do já citado Artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.077/1990).
Apoiando os encômios de Marcelo Terra ao compromisso de compra e venda, apenas salientaríamos o risco pouco apercebido que decorre do Artigo 34 da lei de parcelamento do solo, assim taxativo:
“Art. 34 – Em qualquer caso de rescisão por inadimplemento do adquirente, as benfeitorias necessárias ou úteis por ele levadas a efeito no imóvel deverão ser indenizadas, sendo de nenhum efeito qualquer disposição em contrário”. |
Nesse sentido, é de se atentar para o fato de que podem ocorrer hipóteses em que compromissários compradores introduzam no terreno benfeitorias definitivas ou parciais, como, por exemplo, fundações para uma casa em processo de edificação e venham a entrar em inadimplemento quanto ao pagamento do saldo do preço ou outra obrigação do contrato.
Enquanto em tal hipótese será fácil ao compromissário comprovar o valor de seus dispêndios, até mesmo por perícia judicial, ao promitente vendedor resta o risco de ter de ressarcir benfeitorias que, longe de acrescer valor ao imóvel, poderá até lhe impor os custos de uma demolição e/ou da recomposição do terreno às condições originais, para tentar nova venda.
Daí estarmos aconselhando que os instrumentos de promessa de venda, tratando da rescisão por inadimplemento do compromissário, contenham cláusula que, a propósito da restituição dos valores devidos ao compromissário em tal hipótese, além de especificar as verbas a serem deduzidas do reembolso, estabeleça para o valor de eventuais benfeitorias introduzidas pelo compromissário, a obrigação de sua avaliação, por intermédio de empresa especializada da indicação conjunta das partes no contrato, valor que, se positivo, será reembolsado quando da venda do imóvel e se negativo, será descontado do quantum líquido devido ao compromissário, como ressarcimento de seus custos na reposição do terreno às condições primitivas.
Esta cláusula, de conteúdo eqüitativo e de boa fé, não pode ser alcançada pela proibição do Art. 53 do Código de Defesa do Consumidor porque, longe de ser abusiva, é justa e adequada à preservação do direito das partes no contrato.
Fonte: SINDUSCONSP.