Por Melhim N. Chalhub
Limites da prerrogativa da purgação da mora em operações de crédito garantidas por propriedade fiduciária de bens imóveis.
A purgação da mora em operações de crédito garantidas por propriedade fiduciária de bens imóveis tem sido objeto de interessante debate ante a pretensão do devedor de exercer essa prerrogativa após a averbação da consolidação, pela qual a propriedade é incorporada ao patrimônio do credor fiduciário.
A questão ganhou grande repercussão a partir de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, que reabriram o prazo para purgação da mora depois da consolidação, fundamentando-se em que:
(1) a Lei 9.514/1997 não teria fixado data-limite para purgação da mora e essa omissão justificaria a aplicação subsidiária do art. 34 do Decreto-lei 70/1966, que, ao regulamentar a execução extrajudicial de crédito hipotecário, permite a purgação da mora até a data da arrematação;
(2) o contrato de mútuo garantido por propriedade fiduciária não se extingue por força do inadimplemento absoluto e da consolidação da propriedade no patrimônio do credor fiduciário; e
(3) a consolidação da propriedade não importa em incorporação do imóvel no patrimônio do credor fiduciário. [1]
A matéria tem sido objeto de alguns estudos, entre os quais citam-se os artigos “Alienação fiduciária de bem imóvel. algumas notas sobre a purgação da mora após a consolidação da propriedade em nome do credor”, de Mauro Antonio Rocha, “Alienação fiduciária – restauração do registro pelo cancelamento em decorrência da consolidação da propriedade”, de Sérgio Jacomino, ambos publicados no Observatório do Registro, em 28.8.2015 e 25.6.2017, e “Limites da prerrogativa da purgação de mora nos contratos de mútuo com pacto adjeto de alienação fiduciária”, de minha autoria, publicado na Revista de Direito Imobiliário, v. 80, junho de 2016.
Esses trabalhos tratam de alguns elementos essenciais da caracterização da propriedade fiduciária e sua distinção da garantia hipotecária, que tornam as normas que regulamentam esta última insuscetíveis de aplicação subsidiária à garantia fiduciária.
Tal apreciação sobre o tratamento diferenciado se justifica tendo em vista que as decisões acima referidas buscam fundamento no art. 39 da Lei 9.514/1997, que prevê a aplicação das normas sobre execução hipotecária, instituídas pelos arts. 29 a 41 do Decreto-lei 70/1966, às operações de financiamento imobiliário em geral de que trata a citada Lei 9.514/1997.
Com base no art. 39 da Lei 9.514, o REsp 1.433.031-DF manda aplicar subsidiariamente à execução de crédito garantido por propriedade fiduciária o art. 34 do Decreto-lei 70/1966, que faculta ao devedor hipotecante purgar a mora até a data da assinatura do auto de arrematação do imóvel hipotecado, fundamentando-se em que a Lei 9.514/1997 não fixa prazo para o devedor fiduciante purgar a mora. Essa regra é adequada para as execuções hipotecárias, mas é incompatível com o regime jurídico da garantia fiduciária, não sendo admitida sua aplicação analógica aos créditos garantidos por propriedade fiduciária não somente em razão da incompatibilidade estrutural entre essas garantias, mas, também, porque há na Lei 9.514/1997, sim, regra específica que fixa o prazo para purgação da mora (§ 1º do art. 26 e § 2º do art. 26-A), não havendo, portanto, lacuna que pudesse justificar o recurso à analogia.
São também incompatíveis com o regime jurídico da garantia fiduciária os argumentos segundo os quais (i) o contrato não se extingue por efeito do inadimplemento, caracterizado pela não purgação da mora no prazo legal, e (ii) a averbação da consolidação da propriedade não importa em transferência do imóvel ao credor fiduciário.
Com efeito, a propriedade fiduciária em garantia é uma propriedade resolúvel subordinada a uma conditio juris, cujos efeitos são produzidos pela simples ocorrência ou não ocorrência de evento definido por lei, quais sejam, o adimplemento ou o inadimplemento da obrigação garantida.
Tanto o adimplemento, quanto o inadimplemento, importam na extinção do contrato à qual essa garantia está vinculada; no primeiro caso, implementada a condição (pagamento), extingue-se o contrato, com a consequente reversão da propriedade plena ao patrimônio do fiduciante; no segundo caso, não implementada a condição (retardamento do pagamento e não purgação da mora), caracteriza-se o inadimplemento absoluto e, em consequência, extingue-se o contrato, da qual resulta a expropriação do imóvel mediante transferência da propriedade plena ao patrimônio do fiduciário, sob forma de consolidação.
Sabendo-se que a purgação da mora tem por finalidade primordial a conservação do contrato, fica claro que, rompido o vínculo, não há mais contrato a convalescer.
Ao comentar especificamente a disposição da Lei 9.514/1997 que trata da purgação de mora e dos efeitos da não purgação, nas operações de crédito garantidas por alienação fiduciária de bem imóvel, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe esclarecem: “não remediado a tempo e modo de alcançar o convalescimento de que fala o § 5º, caracteriza-se o inadimplemento do devedor ope legis, na via cartorária, o que leva à falência total da relação jurídica contratual (§ 7º)”. [2]
A partir da “falência da relação jurídica contratual” não é mais cabível a purgação da mora, como observa Francisco Eduardo Loureiro: “o inadimplemento absoluto marcará o momento a partir do qual não mais poderá o devedor fiduciante pagar as parcelas em atraso e, portanto, cumprir a condição resolutiva da propriedade fiduciária, que, então, tornar-se-á plena nas mãos do credor”. [3]
A expropriação mediante transferência da propriedade para o credor fiduciário, que tem como pressuposto, obviamente, a extinção do contrato, é prevista por expressa disposição do Código Civil, segundo a qual o credor fiduciário se torna “proprietário pleno do bem, por efeito de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade …” (parágrafo único do art. 1.368-B). Especificamente em relação à consolidação da propriedade fiduciária de bem imóvel, o § 7º do art. 26 da Lei 9.514/1997 dispõe que, decorrido o prazo fixado para a purgação sem que o devedor tenha efetivado o pagamento, “o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário…”.
Assim, extinto o contrato por efeito do inadimplemento, desaparece o suporte contratual que, enquanto existia, viabilizava a continuidade do vínculo obrigacional mediante convalescimento do contrato por efeito da purgação da mora.
Na sequência, por força da averbação da consolidação, o fiduciante perde o direito real de aquisição que a ele prendia o imóvel.
Consolidada a propriedade, o imóvel estará plenamente incorporado ao patrimônio do credor fiduciário, de modo que, ao ser realizado o leilão, o vínculo real entre o antigo fiduciante e o imóvel só poderá ser restaurado mediante nova aquisição.
Essa parece ter sido a solução aventada no acórdão proferido no REsp 1.462.210-RS, acima referido, cujo voto condutor faz menção “à nova transmissão da propriedade”, atribuindo ao devedor fiduciante o reembolso das quantias despendidas pelo fiduciário com a consolidação, ao prever que “[…] os prejuízos advindos com a posterior purgação da mora são suportados exclusivamente pelo devedor fiduciante, que arcará com todas as despesas referentes à ‘nova’ transmissão da propriedade e também com os gastos despendidos pelo fiduciário com a consolidação da propriedade (ITBI, custas cartorárias, etc)” (grifamos).
Apoiados nos precedentes do STJ, o juiz Paulo César Batista dos Santos, apoiado em decisão da juíza Tânia Mara Ahualli, ambos da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo, Capital, deferiu pedido de pagamento integral do débito, mas ressalvou que “a consolidação da propriedade é constitutiva de direito, não sendo o cancelamento de tal ato possível para se reverter ao estado anterior. A questão poderá ser resolvida através da realização de um novo negócio jurídico entre as partes, que suportarão seus custos, para a renovação da garantia ou alteração da propriedade”. [NE: @ Processo 1VRP 1007296-57.2017.8.26.0100, j. 18/4/2017, Dje 24/4/2017, Dr. Paulo César Batista dos Santos].
Assim, ao determinar a “realização de novo negócio jurídico entre as partes (…), com a renovação da garantia ou alteração da propriedade”, a decisão mantém-se alinhada à dogmática da propriedade resolúvel e às normas do sistema registral (Lei 6.015/1973), a saber, o novo negócio jurídico é a compra e venda pela qual o antigo credor fiduciário transmitirá a propriedade ao antigo devedor fiduciante; a “renovação da garantia” referida na sentença seria um novo gravame sobre o imóvel, caso o antigo fiduciante tivesse necessidade de tomar financiamento para essa nova aquisição e para tal tivesse que constituir garantia real sobre o mesmo imóvel; e a “alteração da propriedade” é a mutação subjetiva decorrente da nova aquisição pelo antigo fiduciante.
Coerentemente com esses fundamentos, o Congresso Nacional, por meio do PLV 12/2017 (Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 759/2016), aprovou emendas à Lei 9.514/1997, pelas quais é incluído o § 2º-B no art. 27 e alterada a redação do art. 39 e seu inciso II.
O § 2º-B, que será acrescido ao art. 27 da Lei 9.514/1997, dispõe sobre a reaquisião da propriedade pelo antigo fiduciante; confere-lhe preferência para readquirir o imóvel por preço correspondente ao valor do saldo devedor do contrato extinto, acrescido dos respectivos encargos e das despesas da consolidação e do leilão, se este já tiver sido anunciado, deixando claro que, após a averbação da consolidação e até o segundo leilão o valor a ser pago pelo antigo fiduciante é a integralidade da dívida, não mais se podendo cogitar da prerrogativa de purgação da mora. [4]
O art. 39 e seu inciso II da Lei 9.514/1997, por sua vez, na nova redação aprovada pelo PLV 12/2017, prevê que as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei 70/1966 podem ser aplicadas às operações de crédito compreendidas no sistema de financiamento imobiliário, mas incidem apenas e exclusivamente nas operações de crédito garantidas por hipoteca, e não por propriedade fiduciária. [5]
Vindo a ser sancionadas, as novas disposições da Lei 9.514/1997 certamente porão fim às controvérsias sobre os limites da prerrogativa de purgação de mora nas operações de crédito garantidas por propriedade fiduciária de bem imóvel, na medida em que essa alteração legislativa deixa claro, em primeiro lugar, que, uma vez averbada a consolidação da propriedade, o valor exigível do antigo fiduciante é o correspondente ao valor integral da dívida com seus encargos e acrescido das despesas de consolidação e leilão, sendo esse o preço pelo qual o antigo fiduciante tem preferência para readquirir o imóvel, não mais sendo admitido o convalescimento do contrato mediante purgação da mora, e, em segundo lugar, que a purgação da mora até a data da arrematação é regra aplicável exclusivamente às execuções de crédito garantido por hipoteca, sujeitando-se os créditos garantidos por propriedade fiduciária ao regime jurídico especial instituído pela Lei 9.514/1997.
Afinal, as normas procedimentais sobre execução hipotecária instituídas pelo Decreto-lei 70/1966 e aquelas outras que tipificam o contrato de alienação fiduciária e qualificam a propriedade fiduciária de bem imóvel em garantia, instituídas pela Lei 9.514/1997, conformam-se às singularidades de cada uma dessas figuras e aos procedimentos de execução dos créditos a que estão vinculadas essas distintas garantias, e por terem sido elaboradas em conformidade com essas especificidades, são normas de “alcance limitado, aplicáveis apenas às relações especiais para as quais foram prescritas”. [6]
Advogado, membro da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário. Autor dos livros Alienação Fiduciária/Negócio Fiduciário, Direitos Reais e Incorporação Imobiliária, entre outros.
NOTAS
[1] “Habitacional. Sistema Financeiro Imobiliário. Purgação da mora. Data-limite. Assinatura do auto de arrematação. Dispositivos legais analisados: arts. 26, § 1º, e 39, II, da Lei 9.514/1997; 34 do DL 70/1966; e 620 do CPC. (…). 4. Havendo previsão legal de aplicação do art. 34 do DL 70/99 à Lei 9.514/97 e não dispondo esta sobre a data-limite para purgação da mora do mutuário, conclui-se pela incidência irrestrita daquele dispositivo legal aos contratos celebrados com base na Lei 9.514/97, admitindo-se a purgação da mora até a assinatura do auto de arrematação. (…). 6. Considerando que a purgação pressupõe o pagamento integral do débito, inclusive dos encargos legais e contratuais, nos termos do art. 26, § 1º, da Lei 9.514/97, sua concretização antes da assinatura do auto de arrematação não induz nenhum prejuízo ao credor. Em contrapartida, assegura ao mutuário, enquanto não perfectibilizada a arrematação, o direito de recuperar o imóvel financiado, cumprindo, assim, com os desígnios e anseios não apenas da Lei 9.514/97, mas do nosso ordenamento jurídico como um todo, em especial da Constituição Federal” (REsp 1.433.031-DF, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 18/6/2014. Grifamos).
“No âmbito da alienação fiduciária de imóveis em garantia, o contrato não se extingue por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, mas, sim, pela alienação em leilão público do bem objeto da alienação fiduciária, após a lavratura do auto de arrematação. 3. Considerando-se que o credor fiduciário, nos termos do art. 27 da Lei 9.514/1997, não incorpora o bem alienado em seu patrimônio, que o contrato de mútuo não se extingue com a consolidação da propriedade em nome do fiduciário, que a principal finalidade da alienação fiduciária é o adimplemento da dívida e a ausência de prejuízo para o credor, a purgação da mora até a arrematação não encontra nenhum entrave procedimental” (REsp 1.462.210-RS, 3ª Turma, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 25/11/2014. Grifamos).
“Recurso especial. Alienação fiduciária de coisa imóvel. Lei 9.514/1997. Quitação do débito após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário. Possibilidade. Aplicação subsidiária do Decreto-lei 70/1966. Proteção do devedor. Abuso de direito. Exercício em manifesto descompasso com a finalidade. 1. É possível a quitação de débito decorrente de contrato de alienação fiduciária de bem imóvel (Lei 9.514/1997), após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário. Precedentes. 2. No âmbito da alienação fiduciária de imóveis em garantia, o contrato não se extingue por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, mas, sim, pela alienação em leilão público do bem objeto da alienação fiduciária, após a lavratura do auto de arrematação. (…)” (REsp 1.518.085-RS, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 20/5/2015. Grifamos).
[2] RESTIFFE NETO, Paulo, e RESTIFFE, Paulo Sérgio, Propriedade fiduciária imóvel. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 162 e 164-165.
[3] LOUREIRO, Francisco Eduardo et al., Código Civil comentado. 9. ed. Coordenador: Ministro Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 2015, comentário ao art. 1. 363, p. 1.324.
[4] Lei 9.514/1997: “Art. 27. (…). § 2º-B Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas de que trata o § 2º deste artigo, aos valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedor fiduciante o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel, de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos.” (redação aprovada pelo PLV 12/2017).
[5] Lei 9.514/1997: “Art. 39. Às operações de crédito compreendidas no sistema de financiamento imobiliário, a que se refere esta Lei: (…). II – aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca.” (redação aprovada pelo PLV 12/2017).
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, nº 274.